Sábado, 31 de Outubro de 2009

As cores da vida

 

 

Que cor usar?
Laranja ? Talvez... o laranja transmitia alegria, amizade, sensações quentes...
Ou amarelo? Amarelo... amarelo era luz, amanhecer.... uma vida nova.... sim, também seria apropriado, sem dúvida.
Teria que ser uma cor clara, uma cor alegre.
Sentia-se alegre, transbordava de alegria. As cores escuras, apesar das magníficas tonalidades... não encaixariam nela... pelo menos naquele dia, naquele dia especial.
E o violeta?
Ai, como era delicado aquele tom de violeta... mas assim, como escolher, como resistir à tentação de utilizar todas as cores e principalmente... como adivinhar a cor que ele iria utilizar?
Sentou-se de novo, a palete de pequenos frascos de vidros transbordando cor, bem à sua frente, seduzindo-lhe o olhar.
Ai, ai, ai... como escolher, como escolher?
 
Ele dissera-lhe: - Sabes que não posso levar comigo plantas no avião, não sabes? Por isso, far-te-ei uma surpresa.... levarei uma flor de papel, que eu mesmo pintarei.... e nem te direi a cor, terás que a tentar adivinhar...
 
Finalmente.... decidiu-se. Atacou na folha de papel que escolhera e no pequeno pincel e, com extremo cuidado, meteu mãos à obra.
 
Pouco depois, na sala de desembarque do aeroporto, ali estava ela, nervosa, segurando com as duas mãos a sua pequena surpresa.
Ele, o seu “ele”... voltara.... e voltara de vez, voltara para não mais partir. Iriam terminar os infinitos tempos de espera, as cartas solitárias de amor e saudade, os telefonemas ansiosos, as mensagens minúsculas, o contar dos segundos, dos minutos, dos dias em falta. Tudo isso iria terminar.
Só precisava de conseguir conter a ansiedade.... uns minutos mais.
 
Viu-o.
Lá ao longe, furando por entre a multidão, arrastando a pequena mala laranja, rodopiando por entre os outros passageiros, à procura da saída. Trazia algo na mão, dificil de perceber aquela distância. Mas... ela sabia o que era, sembre soubera.
Transpôs a porta envidraçada, os olhos à procura dela.
Ela permaneceu imóvel, ao fundo da passagem, segurando bem junto ao peito a sua pequena pintura. Já percebera a surpresa dele... uma tulipa amarela, de um amarelo garrido que arrancava sorrisos complacentes com quem se cruzava.
O amor é ridiculo, diriam os mais circunspectos.
Ele dirigiu-se a ela, sorrindo com o prazer inigualável do reencontro, o reencontro tão aguardado.
 
- Sempre escolheste... o amarelo – murmurou ele.
 
Ele ergueu um pouco mais o desenho, uma folha branca com um sol risonho colorido de amarelo e laranja, envolto de raios alegres.
Por baixo, escrevera simplesmente: “ És o meu Sol”
 
Ficaram a a olhar um para o outro, antes do abraço, antes do beijo, antes de tudo. A olhar simplesmente... cada um pensando para si mesmo como a vida era estranha, como o futuro era imprevisivel, como as coisas por vezes acontecem, sem aviso prévio, sem hora marcada, sem receita.
Acontecendo, simplesmente.
 
- Cheguei.... – disse ele, num fio de voz.
Ela pestanejou ao de leve, numa concordância sem palavras.
- Eu sei, amor... vamos para casa?
 

 

publicado por entremares às 22:25
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Sexta-feira, 30 de Outubro de 2009

Blog Gincana - Outubro

 

 http://blogvcd.blogspot.com/

 1ª TAREFA - Vá até o blog "inscrito", imediatamente, antes do seu e:

a) Leia as três últimas postagens.

b) Escolha uma delas para responder às perguntas:

  1) Por que escolheu essa? 

  2) O tema é de seu agrado. Por que?

   3) Já frequentava esse blog? Caso negativo, qual foi sua impressão?

   4) Escolha uma imagem, destas postagens, para ilustrar sua resposta/tarefa.

   5) Faça uma descrição do blog visitado. Comente todos os aspectos que te chamaram ( negativa ou positivamente) a atenção.

  6) Coloque como título, de sua postagem/tarefa, o nome do blog visitado.


 

Ora bem, então vamos lá às tarefas…

 

O blog em análise será portanto " O Blog Viciado", e claro… li as últimas três postagens. Antes de de falar sobre a postagem escolhida, um pormenor: Creio que todos os blogs deveriam ser transparentes na intenção, no fio condutor, deveria ser possível "desenhar" o seu autor(a) em função daquilo que coloca nos posts. Ora o blog viciado tem esse fio condutor, assumiu o compromisso de uma periocidade semanal, propôs-se evidenciar um blog relevante da blogosfera, é esse o objectivo. Essa é para mim a sua grande virtude… e o seu pequeno defeito ( que me perdoe o autor esta critica construtiva ). É a grande virtude por dar a conhecer blogs super-interessantes, que tantas vezes nos passam despercebidos… e o pequeno defeito, porque não os consegue segmentar em função do assunto, incluindo quer os blogs de divulgação, quer os mais intimistas, os de alma de artista, os de intervenção, todos juntos. E porque digo eu que isto é um pequeno defeito? Porque o autor ( um grande abraço, Eduardo ) nos habituou a segmentar o que faz…. Bastando olhar para os 500 blogs da sua autoria, todos eles bem segmentados e com um propósito definido…

Bom… adiante, que se faz tarde. E a postagem preferida? Gostei muito da última, e por vários motivos.

Visito regularmente o blog da Wania e não resisto a colocar aqui a musica que dele retiro:

 

O amor mostra os dentes

Arranca pedaços

A gente consente



Ele passa corrente

Levanta os muros

Se é conivente



Por vezes, serpente

Fratura por dentro

E nem dor se sente



Outras, descrente

Quebra os espelhos

Segue-se indulgente


Sentimento ambivalente

Que faz a razão impotente

Mas se ele é ausente

Que saudade pungente!

 

Pronto… isto é a Wania, mais palavras para quê?

 

 

Blog viciado… todas as semanas… tão certo como um cafezinho, à hora marcada…

 

publicado por entremares às 10:55
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Quinta-feira, 29 de Outubro de 2009

A costela de Adão

 

 

- Porquê?
- Porquê? Eu não preciso de porquês. Eu sou Deus… faço o que quiser.
- Eu sei… não te queria faltar ao respeito… mas tenho curiosidade em saber…
- Adão, Adão…. Não sejas tão curioso… não é bom.
- Mas Deus… repara… é uma questão de lógica, não é?
- Lógica? O que é isso, onde aprendeste essa palavra? Ainda nem foi inventada.
- Bom… de qualquer modo, ó Deus… o certo é que me sinto … muito sozinho.
- …
- A sério… sinto-me mesmo… muito sozinho.
- Como é possível que te sintas sozinho, se Eu estou em toda a parte? Nunca poderás estar sozinho…
- Não é isso, Deus, repara bem… eu sei que estás em toda a parte… e isso às vezes até é um pouco…. opressivo, sabes? Estás sempre a olhar para mim… mas não é isso. Eu dizia sozinho… por não existir mais ninguém…
- Adão… criei o paraíso de propósito para ti… é todo teu. Porque insistes tanto para que Eu crie mais seres humanos? Já te criei a ti…
- Deus… ainda tens aquele desenho que fiz?
- Desenho… hum… sim, creio que sim…
- Pronto… é essa a imagem que eu te peço para criares… já lhe arranjei um nome e tudo…
- Um nome?
- Sim… Eva. Soa bem, não soa? Muito musical…
- …
- E então… aceitas o meu pedido?
- Adão… o teu desenho… sim, tenho-o aqui… é um pouco estranho, apesar de engraçado. Essa criatura que desenhaste é cheia de curvas, não te parece até um pouco… sei lá… frágil demais?
- Frágil? Não, ó Deus…. Assim está simplesmente… perfeita…
- Adão… e se eu criasse outro humano… exactamente igual a ti… não ficarias mais feliz?
- NÃO… Oh, Deus…. ISSO NUNCA…
-Mas… assim poderiam entender-se melhor, de igual para igual…
- Deus, meu Deus… mas eu não quero nada dessa igualdade… eu quero é mesmo… experimentar as diferenças…
- …
- E então… pode ser?
- …
- Deus… pode ser ?
- Adão… tu és aborrecido…. E muito insistente. E por isso mesmo, sabes o que vou fazer? Sabes? Vou castigar-te…
- Mas…
- É isso mesmo Adão… quando mais quiseres "experimentar as diferenças", como tu lhe chamaste… sabes o que Eu vou fazer? Vou fazer com que a Eva se desculpe com uma dor-de-cabeça, para que tu te lembres sempre da tua teimosia…
- Mas Deus…
- Nem mais uma palavra, Adão. Silêncio. E agora deita-te e adormece. Preciso de te retirar uma costela…

 

publicado por entremares às 12:22
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Quarta-feira, 28 de Outubro de 2009

Somewhere over the rainbow...

 

Era uma vez uma menina, um leão, um homem de lata e um espantalho.
Não, claro que não se trata do feiticeiro de Oz, não fiquem já a pensar nessa história.
Estas quatro personagens eram simplesmente pequenas estatuetas, delicadamente esculpidas em porcelana, sobre uma base amarela.
O pequeno conjunto, coloridos e pousado sobre o tampo da velha escrivaninha de madeira... possuia ainda um putro predicado, um pormenor que o tornava deveras único.
Ao tocar-se qualquer uma das quatro figurinhas, a caixinha de musica escondida no seu interior entrava em funcionamento e de imediato se ouviam os acordes das musicas tão bem conhecidas... do feiticiero de Oz.
 
Naquele dia, Dorothy, a vulgar telefonista de uma bem conhecida empresa de telecomunicações móveis, não tinha motivo algum para sorrir, tão pouco para se apressar. Com um gesto cansado, atirou o casaco beje para cima da cadeira e deixou-se cair sobre o sofá.
Acabara de ser despedida.
 
Durante muito tempo, ali permaneceu. Imóvel, em silêncio, vendo desfilar impotente diante dos olhos as imagens dos ultimos quinze anos da sua vida, dedicados a uma profissão, a um emprego que considerara eterno, seguro. Não constituira familia, a sua familia fora construida sobre as amizades do local de trabalho, partilhando o dia-a-dia, aventuras e desventuras, com todos os que partilhavam aquele espaço.
E agora.... assim de repente, fora jogada fora, como um sapato velho, imprestável.
 
A pequena estatueta, bem à sua frente, pousada sobre a escrivaninha de madeira, parecia querer dizer-lhe algo.
 
Tocou-lhe ao de leve, os dedos roçando a figurinha frágil de Dorothy, a personagem com o nome igual ao seu, na vida real.
De imediato, os acordes familiares de “ Somewher over the rainbow” fizeram-se ouvir, numa versão já riscada de tanto tocar, acusando o passar dos anos.
Ficou a ouvi-la em silêncio.
 
“Em algum lugar além do arco-íris
Acima das montanhas
existe uma terra de que eu ouvi falar
Uma vez numa canção de embalar

Em algum lugar além do arco-íris
Onde o céu é azul
E os sonhos que você ousa sonhar
Realmente tornam-se realidade.

Um dia eu quis alcançar uma estrela
E acordei num lugar bem longe das nuvens

Onde os problemas se derretem como doces de limão
Num lugar bem acima do topo das chaminés
É onde me poderão encontrar.

Em algum lugar além do arco-íris
Pássaros azuis voam
Pássaros voam além do arco-íris
Porquê eles ... e eu não posso?

Então se os pequenos pássaros azuis voam
Além do arco-íris
Poque...  porque eu não posso?”
 
 
Podia. Podia sim.
A vida não terminava ali. A vida não terminava nunca.
Lembrava-se do pai, o eterno companheiro de brincadeiras, a dizer-lhe: “ Nunca, Dorothy. O impossível não existe. Tu és capaz de tudo.”
 
Lembrava-se sim.
Tal como se lembrava do dia do seu décimo terceiro aniversário – o último que partilhara com o pai – quando ele lhe oferecera aquela caixinha de música, bem escondida na estatueta das personagens do feiticeiro de Oz.
 
Levantou-se e pegou no casaco.
Apetecia-lhe um café.
 
A vida continuava. E lá fora, algures à sombra de um arco-iris, um outro emprego, uma outra esperança, uma outra vida esperava também por ela.
Não a podia fazer esperar.
 
 
 

 

publicado por entremares às 13:28
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Terça-feira, 27 de Outubro de 2009

Audrey Hepburn

 

 

Olhou-se de novo ao espelho
O cabelo cortado curto, o rosto esguio, suave, aquela indefinivel doçura, impossivel de classificar.
Ajeitou os pequenos pingentes que lhe serviam de brincos. Nunca gostara de exibir demasiada cor, as cores escuras assentavam-lhe melhor, diziam.
A blusa justa colou-se ao peito, aderindo-lhe como uma segunda pele.
 
Simples.
Quando fora a última vez que experimentara aqueles sapatos?
Por vezes... – pensou – não cabia em si de felicidade, saboreando o prazer de poder percorrer as ruas, anónima, vulgar, longe dos flshes da fama, dos admiradores, de toda a confusão insana dos famosos, evitando os delirios da multidão.
 
O espelho devolveu-lhe o olhar. Um olhar suave, os lábios finos num permanente sorriso contagiante.
Sobre a superfície polida, vários papelinhos coloridos colados e num dos cantos, aquela fotografia.
Não se cansava de a admirar.
De todas as vezes que se observava ao espelho recordava as palavras da mãe, quando a vira vestida para o baile de finalistas, alguns anos antes.
- Filha... como estás linda... sabes que pareces mesmo a Audrey Hepburn? És igualzinha a ela...
 
A fotografia.
Sim... possuia algumas semelhanças, é certo. A forma do rosto, oval, a pele branca, talvez um pouco do olhar...
- Ah...mas a magia, aquela magia... o que tinha aquele rosto que ela não conseguia imitar?
 
Apagou a luz e preparou-se para sair.
Não.
Ela não era Audrey Hepburn.
Ela era simplesmente... ela própria.
E a magia? Sim... a magia... ela também a possuia, todos possuiam essa magia intocável que por vezes, permanece escondida toda uma vida, sem nunca brotar para o exterior.
Não.
Ela não era Audrey Hepburn.
 
Mas, naquele momento, sentiu-se especial.
E sabia que, quando saísse por aquela porta, seria especial.
Bastava acreditar.

 

publicado por entremares às 12:00
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Segunda-feira, 26 de Outubro de 2009

A esplanada de Copacabana

 

 

Praia de Copacabana, uma tarde morna de primavera.
 
- Uma coca-cola light... e um café expresso, por favor.
O empregado atencioso desapareceu, gincando por entre as mesas cheias, em plena tarde. Corria aquela aragem fresca do mar, as esplanadas estavam cheias de gente de fim de tarde, bebericando refrescos, lendo jornais, descansando a vista no areal da praia. Uma tarde normal, pejada dos ruídos do trânsito, dos gritos dos vendedores de bugigangas, aqui e ali salpicada por casais de namorados enrolados na areia.
- Pode ser uma cola zero, dona? E senhor... não temos café...
 
Como assim, não têm café? Mas estamos no Brasil, como é possível não ter café? Em Roma é obrigatório ter pasta, vocês têm que ter café... como é possível?
- Anh... pode ser então uma água... sem gás.
O empregado desapareceu novamente, insensível aquele desabafo mental.
Sinceramente... onde já se viu... uma esplanada sem café?
Ela sorriu-lhe.
- Amor... queres ir procurar outro lugar? Pode ser que tenham café...
 
As madeixas louras caiam-lhe pelos ombros, naquele jeito tão especial de lhe emoldurar o rosto. Não se cansava de a admirar.
- Não... sério, está tudo bem... tomo uma água... estamos bem aqui...
Olhavam para o mar, para a areia branca onde se haviam sentado, pouco antes, entrelaçados num daqueles abraços apaixonados. Na mesa do lado, outro casal tentava explicar a um dos funcionários da esplanada qual o botão a carregar, na máquina fotográfica digital. O pobre moço insistia em pressionar o botão errado e finalmente, depois de várias poses e sorrisos para o flash, o casalinho lá se deu por satisfeito e libertou o pobre fotógrafo desajeitado.
E eis que nesse momento lá vem ela... uma bola azul, disparada de longe, do campo de jogos improvisado bem defronte da esplanada.
Embate na mesa da frente, fica ali a dançar junto das pernas da moça, o possível namorado a franzir a testa de desagrado.
Um dos jogadores corre, vem buscar a bola, o corpo reluzente de suor. Desfaz-se em desculpas, lança à rapariga um sorriso desafiador e volta de novo ao jogo, bola debaixo do braço.
 
- A sua água, senhor...
Ah, sim, a água, já se esquecera dela. Que vicio aquele, de observar as pessoas. Mas não se cansava, o mundo sempre seria um imenso palco de histórias simultâneas, histórias cruzadas, histórias paralelas, personagens surreais, realidades que por vezes superavam – e muito – a própria ficção que ele adorava escrever.
 
Mas... outra vez?
Era. Outra vez.
A mesma bola azul, volteando pelos ares... em direcção à mesma mesa, talvez mesmo mais certeira, alojando-se mesmo aos pés dela. Ela segurou-a entre os pés, divertida. O seu acompanhante alternava entre o divertido e o desagradado, sem se decidir ao certo.
E lá vem de novo o espadaudo bronzeado buscar a bola, o mesmo sorriso, a mesma desculpa esfarrapada.
Ela finge reter a bola entre os pés, oferece resistência... ele lança-lhe um sorriso de malicia, pisca-lhe o olho.
Finalmente pega na bola, lança-lhe um sorriso quase beijo e volta de novo ao areal.
 
Por baixo da mesa, sentiu o toque bem familiar da perna dela, a roçar na sua.
- Estavas a observar.... não estavas?
Segurou-lhe a mão, entrelaçando os dedos nos dela.
- Estava... a divagar, é só – respondeu ele.
- A divagar, pois... vai sair daqui uma história, não vai? Mais uma das tuas histórias...
Foi a vez dele sorrir.
- Essa agora... porque dizes isso? Eu só estava aqui a descansar, mais nada... e depois veio aquela bola azul e...
 
- Eu sei... estás outra vez com aquele brilhozinho...
- Brilhozinho? Como assim?
- Brilhozinho, sim... aquele olhar brilhante com que ficas ... quando te surgem essas ideias...
 
Beijou-a.
- Hum.... – lá disse, finalmente – és deliciosamente perspicaz, sabias?
Ela concordou.
- Estou só... a ler-te o olhar... só isso...

 

publicado por entremares às 07:30
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Domingo, 25 de Outubro de 2009

O inicio da espera...

 

 

 

- Tenho a mão fria...
Ela levantou a blusa de lã e encostou-lhe a mão à barriga.
- Assim está melhor?
- Está... está bastante melhor, está quente...
Ela sorriu.
- Claro que está quente, meu tonto... e então... diz-me... já pensaste?
Ele permaneceu em silêncio, deixando a mão deslizar sobre a pele branca. Que sensação estranha aquela – estranha e suave, como feltro, como musgo verde de primavera.
- Já... já pensei – disse finalmente – mas não te parece que ainda é demasiado cedo para pensarmos nisso? Ainda nem tens...
- A certeza? – atalhou ela de imediato – claro que tenho a certeza.... uma mulher sabe, meu querido, uma mulher sabe sempre...
 
Ele emoldurou-lhe o rosto num olhar terno, dedicado. Sentiu por momentos que todas as palavras eram desnecessárias, superfluas.
- Gostava que se chamasse ... Artur, como o avô... se for rapaz.
- Artur?... É um nome bonito... e se for rapariga?
- Rapariga? Talvez Bianca... como a filha daquela tua amiga, sabes? Aquela que teve gémeas...
Ela procurou-lhe a mão, entrelaçando os dedos nos dele.
- Tens bom gosto para nomes...
 
Permaneceram mudos, perdidos num mar de sonhos, cada vez mais perto de se cumprir.
Finalmente, foi ela que rompeu o silêncio.
 
- Fazem um contraste bonito, não fazem?
 
Olhava para as mãos entrelaçadas, pousadas ainda sobre a barriga. A dela, de pele muito branca, a dele escura como ébano.
 
Ele beijou-lhe os olhos ao de leve.
 
- Fazem... fazem sim... e tenho a certeza que a Bianca ou o Artur, qualquer que seja a cor... será a criança mais linda do mundo.... tenho a certeza.

 

publicado por entremares às 08:36
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Sábado, 24 de Outubro de 2009

Contagiar é preciso

 

 

Era uma vez uma menina, de olhos negros e longas tranças no cabelo.
Como todas as meninas, gostava de brincar com bonecas, em castelos e contos de fadas, inventando príncipes e princesas, reinos de magia, bolas de algodão doce e céus azuis pejados de arco-iris.
A infância era feliz.
Todas as infâncias deveriam ser assim, felizes.
Com tempo para brincadeiras, correrias nos pátios da escola, sorrisos abertos.
 
Aquela menina possuía no entanto… um dom especial.
No recanto seguro do seu quarto, pintava pedras.
Grandes, pequenas, de todas as formas e feitios. Aprendera a gostar das pedras, tal como aprendera a gostar de pintar, observando a mãe, quando esta se perdia no jardim, falando com as flores.
Como era linda, a sua mãe.
E como gostava de a desenhar, de memória, de olhos fechados, rabiscando na folha de papel os traços meigos do seu rosto.
 
Naquele momento, as suas mãos seguravam duas pequenas pedras, estranhamente iguais a dois corações. Encontrara-as à beira do rio, encostadas uma à outra.
Quando reparou nelas, foi como se um vento súbito lhe varresse a alma de uma cor límpida, como se de repente a primavera tivesse entrado sem pedir licença a ninguém. Apanhou-as, cheia de cuidado.
 
Agora… agora as duas pequenas pedras, os dois pequenos corações fitavam-na, pousados sobre a mesa de madeira do quarto, a tinta vermelha ainda por secar, brilhantes.
 
Uma seria para si.
Guardá-la-ia sempre junto ao coração.
A outra… sempre tivera um destino certo para ela…
 
Pouco depois, descia as escadas a correr, um embrulho a chocalhar com uma pequena pedra colorida dentro, um vistoso laço vermelho por fora.
 
- Mãe…. Mãe… - ia gritando - onde estás? Tenho aqui uma prenda para ti… onde estás?
 
 
Nota: Para a Gislene, uma daquelas raras pessoas que sabe contagiar os outros.
 
 
 

 

publicado por entremares às 10:37
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Sexta-feira, 23 de Outubro de 2009

O entardecer na praia

 

 

 


 

 

O entardecer da praia – talvez de qualquer praia – era sempre algo de mágico, único.

Da varanda do quarto de hotel, deixou que o olhar se perdesse na areia, no rebentar das ondas, no vaivém da espuma  molhada. Alguns atletas de domingo aproveitavam os últimos raios de sol para uma corrida no areal, contornado os improvisados campos de futebol, saltando sobre os castelos de areia.

As gaivotas, habitualmente tão pontuais, ainda não haviam anunciado a sua presença.

Ela esticou os braços, libertando a preguiça acumulada

- Um café ... como saberia bem agora um café...

Foi então que reparou neles. Ali bem na sua frente, no meio do areal.

Qualquer deles certamente já com idade suficiente para ser seu pai ou mãe, talvez mesmo ate avós. Ambos sentados na areia, ela colada a um vestido arroxeado, longas madeixas brancas caídas sobre os ombros, ele dedilhando um violão, um chapéu de palha a proteger-lhe os olhos do sol poente.

Aquela distância, nunca conseguiria ouvir os acordes da musica, abafados pelo rebentar das ondas. Mas conseguia perceber a suavidade do toque, a dedicação da presença, inclinado para ela.

Subitamente, sentiu inveja deles, ou daquilo que representavam . Desejou sem querer que quando chegasse o seu tempo -  o tempo dos cabelos brancos e das longas tardes de outono – existisse também para ela uma praia e a atenção de um violão, dedilhado com ternura e sentimento, com paixão ate.

- Vem para dentro... esta a entrar muito frio aqui para dentro...

Ela voltou à realidade.

Sobre os lençóis revolvidos, ele lançava-lhe um olhar… aquele olhar de desejo que ela tão bem conhecia.

- Apetecia-me ir caminhar na praia… - disse finalmente - tenho saudades dos nossos passeios de mãos dadas, ao longo do areal…

Ele abriu muito os olhos.

- Os nossos passeios na praia? Mas nós nunca passeámos na praia… sempre te fez impressão caminhar descalça sobre a areia…

- Eu sei… mas isso é o passado…. Agora eu quero ter saudades desses nossos passeios na praia…. Levas-me? Vens comigo?

Ele soltou os lençóis e caminhou para ela, encostando-se os dois às vidraças da varanda. Lá fora, os últimos raios de sol anunciavam o crepúsculo, tingindo de carmim as nuvens mais longinquas.

- Posso fazer-te uma pergunta ? - lançou ele finalmente, o queixo apoiado sobre o ombro dela.

Ela concordou em silêncio.

- Queres … envelhecer comigo?  

   

De repente… sentiu qualquer coisa a irromper-lhe dos olhos. Não fosse a imensa felicidade, poderia até ser simplesmente uma lágrima de sal. Não lhe respondeu.

   

Ao invés disso, apertou-lhe simplesmente a mão com força, com muita força.

 

 

publicado por entremares às 11:42
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Quinta-feira, 22 de Outubro de 2009

As bolinhas amarelas

 

 

 

A mercearia do senhor Joaquim - bem ao fundo da rua das flores -  resistia, ano após ano, ao avançar do grande comércio, das galerias, dos hiper e dos super-mercados. Por entre as montras envidraçadas das perfumarias, ourivesarias e até algumas lojas de roupa, as estantes de fruta alinhadas no passeio  e os expositores de guloseimas continuavam a dar aquele toque colorido à rua que já perdera os canteiros de flores que lhe tinham dado à luz o nome.

O senhor Joaquim, claro, era ele próprio uma relíquia, uma daquelas personagens de tempos idos, sempre empertigado dentro do seu avental, servindo os clientes fiéis com um sorriso genuíno, que acompanhava com o seu cumprimento habitual – “Então ora muito bom dia, minha cara senhora, que prazer me dá a sua inestimável visita”

Os clientes, na sua maioria donas de casa idosas do bairro, entregavam-lhe os destinos culinários das famílias, com a confiança inabalável de muitos anos – Ah, senhor Joaquim.... nem imagino o que vai ser o nosso almoço hoje... olhe... escolha por mim, está bem? Já sabe que o meu marido prefere carne... escolha... escolha qualquer coisa por mim...”

E o senhor Joaquim escolhia, um prato de frango com vegetais para a dona Aurora e o marido, ambos de dieta, um delicioso coelho com arroz de ervilhas para a dona Margarida, sempre protestando contra a carestia de vida, coitada, até umas postas de bacalhau congelado para a menina Ritinha, sempre atarefada na corrida para a universidade.

O senhor Joaquim decidia, estava decidido.

- E tu, meu menino, o que desejas?

O rapazinho largou por momentos a sua adoração a um expositor de barras de chocolate e aproximou-se do balcão.

- Quanto... – hesitou – quanto custa aquela caixa de chocolates... aquela da fita amarela?

O senhor Joaquim deixou-se rir.

- Tens bom olho, rapazinho, tens bom olho... tinhas logo que olhar para a melhor... e mais cara? Olha... eu creio que devem ser uns cinco euros... mais ou menos.

O rapazinho franziu a testa, ultrapassado que estava – e em muito – o seu apertado orçamento.

- E não tem alguns desses bons mas... assim um bocadinho mais baratos?

O senhor Joaquim pôs-se a fazer contas de cabeça.

- Hum... mais baratos? Sim... talvez, talvez... e diz-me lá... quanto pretendes gastar, com os chocolates, no máximo? Quanto dinheiro trazes?

- Setenta e três cêntimos... mas acho que consigo arranjar ate oitenta...

O bom do senhor Joaquim nem sorriu. Sabia perfeitamente os pensamentos que assaltavam o olhar do seu jovem cliente. Então lembrou-se.

- Olha... chocolates de oitenta cêntimos neste momento estão esgotados... mas temos ali uma promoção, de rifas da sorte, cujos prémios são também aqueles palhaços de chocolate que estão naquele expositor – e apontava para o fundo da loja – até pode ser que queiras tentar a sorte... e se tiveres sorte, o chocolate e grátis, nem precisas de pagar nada... o que me dizes?

Os olhos do rapazinho brilharam de excitação – claro, o que tinha ele a perder? Nada.

- Claro que quero... eu sempre tive sorte nas rifas da feira...

O senhor Joaquim desapareceu por instantes e quando voltou, trazia nas mãos um pequeno saquinho de flanela verde.

- Olha... é esta a promoção... não sei se vais acertar ou não... mas se tiveres sorte... estão aqui dentro do saco dez bolinhas... nove pretas e uma branca. Se tiveres sorte e conseguires colocar cá dentro a tua mão e retirar a bolinha branca... podes ir buscar o palhaço de chocolate...

Nem foi preciso explicar segunda vez. O rapazinho avançou resoluto e meteu a mão dentro do saco. Cerrou os dentes num desejo surdo e quando a retirou... trazia entre os dedos um pequeno berlinde de vidro branco.

- É branca – gritou entusiasmado – é branca, é branca... isso quer dizer que ganhei?

O senhor Joaquim olhava para ele, espantado.

- Claro... claro que sim... as regras eram essas... se acertasses... ganhavas o palhaço de chocolate.... podes ir buscá-lo... são aqueles lá ao fundo...

O rapazinho correu célere a resgatar o seu prémio e pouco depois saía para a rua, feliz e contente, saboreando o seu tesouro.

 

- Tu não resistes, pois não?

Virou-se. A mulher, dona Catarina dos Santos, limpando as mãos ao avental, olhava rindo para o marido.

- Ora... que querias tu que eu fizesse? O miúdo só tinha oitenta cêntimos...

Ela aproximou-se, pegou no pequeno saco de flanela e despejou-o sobre o balcão. Imediatamente nove berlindes brancos rolaram sobre o tampo de madeira, tilintando uns contra os outros.

- Pois... mas sabes quel é o problema, meu querido marido, sabes? E que com este teu hábito de encheres o saquinho só com berlindes brancos... eu tenho que estar sempre a refazer os conjuntos dos saquinhos... estamos a ficar sem berlindes brancos, sabias?

Não queres pensar em começar a utilizar outra cor, por exemplo?

O marido devolveu-lhe o mesmo sorriso cúmplice.

- És capaz de ter razão, minha querida... és capaz de ter razão... e que me dizes se passar a colocar cá dentro... amarelos, achas bem?

Ela abanou afirmativamente a cabeça.

- Muito bem, muito bem... passarão então a ser... bolinhas amarelas…

publicado por entremares às 16:39
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Quarta-feira, 21 de Outubro de 2009

Amigos, meus bons amigos...

 

 

Amigos, meus bons amigos,
 
Conhecem aquela sensação... ( eu sei que conhecem ) de medo ( pânico ) perante o desconhecido, de espreitar o abismo e contemplar simplesmente um manto de nuvens que nem vos deixa vislumbrar o paraíso que ( acreditam vocês ) está lá embaixo... bem por debaixo das nuvens?
 
Conhecem aquela sensação de estar na orla da montanha, de olhos fechados... sabendo que querem saltar... um salto no escuro, um salto no desconhecido... e esperando que do outro lado das nuvens, na terra prometida, algo vos ampare a queda, algo vos receba nos braços, algo vos diga que nem tudo são cantos de sereia?
 
Conhecem tudo isso?
 
Conhecem o sabor amargo da monotonia, o ritmo gasto dos passos, o tilintar costumeiro de todos os hábitos, de todas as coisas que já foram deliciosas e agora se resumem a confortáveis silêncios e palavras de ocasião?
 
Conhecem aquela sensação que – pela menos uma vez na vida – vos rasga por dentro e vos implora que – pelo menos, pelo menos uma vez – arrisqueis e ... tenteis ser mais do que aquilo que já sois?
 
Conhecem aquele ditado que diz que “ o coração tem razões que a razão desconhece?”
Conhecem?
 
Perdoem a a ausência... todos vocês, aqui à volta da fogueira.
Eu fui ... fazer o meu salto ... no desconhecido.
Atravessei o manto de nuvens, num salto sem rede, em busca da terra prometida.
 
E a todos vós confesso... estou feliz. Muito.
 
( Deixem-me responder a todos os comentários... amanhã terei aqui no nosso cantinho café fresquinho e uns bolinhos deliciosos )

 

publicado por entremares às 13:54
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Quarta-feira, 14 de Outubro de 2009

Ao passar a carroça...

 

 

Pai e filho caminhavam sozinhos na rua deserta.
O verão abrasador, aquela hora da tarde, não convidava a grandes passeios. A aldeia inteira, recolhida à sombra das grossas paredes, dormitava … cumprindo o ancestral hábito das sestas, ainda mais saborosas naquelas tardes quentes de verão.
Dirigiam-se ao posto dos correios, um dos poucos locais onde o telefone chegara.
Na grande cidade, existiam os telemóveis, os faxes, os mails, a Internet… toda essa amálgama de novas tecnologias que facilitavam - e muito - a comunicação entre as pessoas.
Mas ali, na pequena aldeia de Vilar dos Passos, encravada nas faldas da montanha, tendo como único acesso uma tortuosa vereda - autêntico caminho de cabras - nada disso chegava. Existia sim, a mercearia do senhor Domingos, que acumulava as funções de posto de correios, banco improvisado para destrocar alguns cheques aos vizinhos e amigos… e pouco mais.
E apesar da hora insensata para desafiar o calor, pai e filho não tinham outro remédio. A mãe, internada no hospital da cidade ia já para duas semanas, só podia receber visitas - e neste caso, telefonemas - das duas às três da tarde.
Portanto, dia após dia, pai e filho desafiavam o calor tórrido e rumavam à mercearia do senhor Domingos, para poder desfrutar de uns momentos de convivência com a mulher e mãe.
 
- Estás a ouvir o ruído que se aproxima? - perguntou o pai.
O filho apurou o ouvido.
- Sim… parece a carroça do Ti Joaquim…
- Hum… olha que não, meu rapaz… esta parece soar diferente…
- Diferente? Porque dizes isso, pai?
- Diferente… ora presta lá melhor atenção…
Detiveram-se à sombra de um beiral, à escuta.
- Tens razão, pai… não é a carroça do Ti Joaquim… este som é diferente…
- Bem visto, meu filho, bem visto… e tens razão, o som é mesmo diferente… consegues perceber porque é diferente?
O pequeno bem que tentou.
- Não… não tenho a certeza, pai…
O pai sorriu.
- Olha… eu dou-te uma ajuda… eu aposto que vem aí um homem bom…
- Um homem bom? Mas tu nem sabes quem traz a carroça, como podes saber se ele é bom ou não?
O pai voltou a sorrir.
- Não vejo, mas ouço… e até te digo mais… é um homem que gosta bastante de animais…
O filho ficou a olhar para ele, confundido.
 
Segundos depois, uma carroça dobra a esquina, as pesadas rodas de aros metálicos a ecoar no empedrado escaldante da rua. A carroça vinha vazia, o condutor a pé puxando pelos arreios o burro cinzento, caminhando ao lado.
De vez em quando, lá soltava alguns sons de encorajamento e o burro, como se compreendesse o incentivo, abanava as orelhas e aumentava milimetricamente o passo.
 
- É o senhor Ferreira, o ferreiro. - reconheceu o garoto - um bom homem, tens razão…
O pai ficou a olhar para o filho, à espera da próxima pergunta.
- Como é que sabias? - quis logo saber? Como é que sabias que era ele?
- Não sabia - respondeu o pai - mas só podia ser alguém como ele, sabes?
O filho continuava à espera da explicação.
- Não percebeste, é isso? Eu ouvi a carroça a aproximar-se… e ouvi os passos do homem, também… ora, que tipo de homem é que viria a pé, sob este calor imenso, ao lado do seu animal, em vez de ir sentado lá em cima, sem fazer esforço? Só podia ser alguém que gostasse muito de animais, não achas?
O ficou concordou com um gesto de cabeça.
 
O senhor Ferreira passava nesse momento à frente deles.
 
- Ora viva, mestre João… menino Tiago. Está tudo bem? Noticias da Dona Catarina, já está melhorzinha?
O pai João lançou-lhe um aceno afectuoso.
- Está melhorzinha, senhor Ferreira, está melhorzinha… eu digo-lhe que perguntou por ela…
Ficaram os dois a vê-lo afastar-se, condutor e jumento, partilhando o sol tórrido do verão.
 
- Vamos continuar? - lá perguntou o pai finalmente
- Claro que sim… hoje sou eu o primeiro a falar com ela ao telefone… posso, pai?

 

 

Nota: Obrigado à Regina ( http://maisondavila.blogspot.com/ ) onde bebi a inspiração , no seu post da carroça vazia...

publicado por entremares às 11:34
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Terça-feira, 13 de Outubro de 2009

O caminho da floresta

 

 

Aquele caminho da floresta não era, certamente, igual a todos os outros.
Das portas da aldeia até à entrada da cidade… que distaria?
Uma hora de caminhada? Talvez nem tanto.
 
O certo era que há muito, muito tempo… ninguém percorria aquele caminho, preferindo contornar toda a montanha, atravessar as duas pontes e subir ou descer a encosta, sempre que se tornava necessário abastecer as casas da aldeia de mantimentos, visitar o médico ou assistir ao serviço religioso, todos os domingos pelas manhãs.
 
O caminho da floresta - dizia-se - estava habitado por …. Espíritos.
 
Os três primos, Adão, Josué e Jeremias tinham uma decisão - complicada - pela frente.
A caravana dos saltimbancos pernoitaria na cidade por pouco mais tempo; uma noite, duas no máximo. E depois, partiriam de novo, rumo a outros destinos, como sempre faziam, ou não fossem eles genuínos ciganos, nómadas por natureza e convicção.
Para Adão… o espectáculo dos engolidores de fogo e do atirador de facas. O fogo sempre fora a sua paixão. Josué, por seu turno, pretendia ver - e se possível experimentar - os belos alazões árabes puro sangue, uma quadriga de cavalos que vencia - sempre - todas as corridas em que participava.
Jeremias, do alto dos seus quase dezoito anos, aspirava a mais - a desejada oportunidade de se infiltrar na tenda das artistas, onde as belas ciganas recebiam os rapazes mais abonados da cidade, lendo-lhes a sina, cantando, dançando e o que mais as moedas de prata pudessem pagar.
Existia contudo… um problema difícil de contornar. O Senhor Ezequiel, pai do Josué e tio do Adão e Jeremias opusera-se frontalmente contra. Nem pensar em ir visitar o acampamento dos ciganos - um antro de pecado, um covil de ladrões.
Para piorar ainda mais a situação, a mercearia do bom Ezequiel ficava mesmo na ponta da aldeia, sobranceira à estrada de acesso à cidade. Impossível passar sem serem vistos.
Só restava portanto… uma solução.
 
- Não me parece grande ideia - protestava o Josué, o mais novo dos três primos.
- Não é grande… mas é a única - contrapunha Jeremias - E se não quiseres vir, não venhas…
O Adão remetia-se ao silêncio, não querendo contrariar nenhum dos dois.
- Não tens medo dos espíritos? - insistia o Josué.
- Eu não tenho medo de nada… Isso são tudo conversas dos velhos, só para nos meter medo… vá, vamos andando… eu vou à frente, querem?
 
Eles não queriam, mas o Jeremias tinha quase dezoito anos, ele lá deveria saber.
A coberto das sombras, contornaram as ultimas esquinas e aventuraram-se pelo caminho da floresta.
A estrada, empoeirada e coberta de folhas secas, projectava-se sob a copa das árvores, num percurso sinuosos. Estranhamente, não ouviram cantar nenhuma das inúmeras aves que sobrevoavam a aldeia, ou aquelas que construíam os ninhos nos beirais.
Simplesmente o silêncio.
 
- Ouviram? - Sobressaltou-se o Adão - O que foi aquilo?
Ninguém ouvira nada.
- Alguma pinha a cair… ainda nem ouvi um único pássaro… - retorquiu Jeremias, calmamente.
- Não… não era uma pinha… parecia antes… um tremor…
Pelo canto do olho, pressentiu o perigo.
- O fogo - gritou - o fogo…
E começou a correr, em direcção à aldeia, perseguido por uma enorme bola de fogo imaginária, que ocupava toda a largura do caminho, rodando, rodando sem parar… quase a alcançá-lo…
Os outros ficaram imóveis, pregados ao chão.
- Adão? O que foi, o que se passa? Porque estás a correr? Onde vais?
O Adão nem os ouvia, correndo aterrorizado pela estrada fora. A bola de fogo crescia a cada segundo - por momentos lembrou-se de todos os fogos que ateara na floresta, só por brincadeira. Este era pior, muito pior do que todos os outros, sentia o calor a queimar-lhe as costas, enquanto fugia, louco de pânico.
 
Os outros ficaram a vê-lo partir, desaparecendo ao longe na curva.
- Não percebi… que bicho lhe mordeu? Até parecia que tinha visto um fantasma… - lá foi dizendo o Jeremias.
- … ou um espírito - murmurou o Josué, bem baixinho. Talvez afinal os espíritos existam mesmo…
- Não digas disparates… vá, vamos continuar… não há tempo a perder…
 
E lá continuaram, em silêncio. A nenhum lhe apetecia falar sobre o assunto mas… porque fugira o Adão, daquele jeito, como se o diabo corresse atrás dele?
 
Algumas curvas depois, Jeremias inquietou-se.
- Tenho a impressão de que nos estão a seguir… - murmurou - não notaste nada?
Josué olhou por cima do ombro, mas a estrada continuava vazia… e em silêncio.
- Não… não vi ninguém…
Mas o Jeremias tinha a certeza.
- Acho que estão atrás das árvores… já me pareceu ver alguns olhos, a brilhar nas sombras…
- Ora… pára com isso, estás só a querer assustar-me…
Mas quem estava assustado … era mesmo o pobre Jeremias, de repente muito pouco na pele dos seus quase dezoito anos. Alguém os estava a seguir… provavelmente até mais que uma pessoa.
Continuaram.
 
Segundos depois, foi a vez de Jeremias se deter, os olhos esbugalhados. Bem na sua frente, um grupo de ciganos, empunhando paus e algumas matracas, barravam-lhe a passagem.
- Não - gritou ele - não, não… afastem-se, para trás, para trás…
Josué olhou para ele, sem perceber o que se estava a passar.
- Jeremias… o que foi, porque estás a gritar?
- Eles… os ciganos… não…. Afastem-se, afastem-se…
E sem mais explicações, correu em direcção à aldeia, esbracejando como louco, despindo a roupa e atirando-a pelos ares.
- Larguem-me, larguem-me… - continuava a gritar, até desaparecer da vista, sempre sem parar de correr.
O grupo de ciganos continuava a correr atrás dele, apesar de só ele os ver. Idênticos, quem sabe até os mesmos que ele habitualmente perseguia, quando os apanhava no mercado, a roubar peças de fruta. Um dia, até conseguira apanhar um dos mais pequenitos, despi-lo em pleno mercado e depois… foi um fartote de riso, vê-lo fugir envergonhado em direcção ao acampamento. Mas todos esses pensamentos lhe desapareceram num ápice porque, olhando por cima do ombro, o grupo furioso corria cada vez mais próximo, já a tocar-lhe as roupas…
 
Josué ficou sozinho, no meio do caminho da floresta.
De repente, sentiu uma leve mudança, como se o ar tivesse de repente aquecido - uma brisa morna parecia deslizar por entre as árvores, levantando as folhas caídas no chão. A luz do sol, como se uma enorme clareira se tivesse aberto nos céus, rasgou as sombras e coloriu de vermelho e dourado as copas das árvores, conferindo ao caminho da floresta um característico ar de Outono.
 
- Olha como está bonito… - pensou para consigo o bom Josué.
 
Sem mais motivos para prosseguir viagem, deu meia volta e rumou de novo à aldeia. Algo lhe dizia que o caminho da floresta era especial, sim… mas não para todos.
Espíritos?
Talvez… talvez que fossem espíritos, quem sabe… mas certamente, não morariam na floresta…
Quando muito, talvez fossem só carregados pelos viajantes, ou pelas suas memórias …  
 

 

publicado por entremares às 18:46
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Domingo, 11 de Outubro de 2009

O meu amigo falcão

 

 

O falcoeiro do rei era um moço afável, de olhar ingénuo, quase criança.
Talvez pela idade, ainda tenra de cicatrizes, sem mágoas de guerras ou batalhas - um rosto jovem, quase sempre a sorrir.
Naqueles tempos, as florestas do reino estendiam-se pelas montanhas, em direcção ao grande desfiladeiro do sul, a fronteira natural, prolongando-se até ao lago, a norte; um território imenso, povoado de mitos e sombras, de dragões e criaturas fantásticas, de magia e de feiticeiros, num tempo em que - dizia-se - até as pedras falavam…
O rei, ainda imponente no alto do seu cavalo negro, disfarçava a idade com uma energia ímpar, continuando o mesmo caçador exímio de outros tempos, participando alegremente nas justas e torneios, ignorando sistematicamente os apelos de prudência dos seus conselheiros.
 
- Em frente.
Esticou o braço e a caravana pôs-se em marcha, os batedores na linha da frente, o rei logo atrás, ladeado de alguns cavaleiros. O moço falcoeiro seguia-os a uma distância respeitosa, misturado com os tratadores de cães e os ajudantes das estrebarias.
Durante as últimas semanas, uma fera que ainda ninguém vislumbrara - talvez um uso - dizimara rebanhos de ovelhas, semeando o caos e o pânico entre os aldeões. Organizaram-se batidas, espalharam-se armadilhas pelos campos… tudo em vão. Noite após noite, os rebanhos eram atacados, apesar das cercas, dos archotes, dos aldeões de vigia. Nada parava a fúria sedenta de sangue da fera desconhecida.
 
- Está quieto, ainda é cedo.
O falcão olhou para ele, como se tivesse percebido o recado. Abriu as asas mais uma vez e lá sossegou, agarrado firmemente à luva do jovem tratador.
Quem os visse assim, lado a lado, facilmente perceberia a relação de cumplicidade entre ambos, esquecendo por momentos que se tratava de um falcão… e de um ser humano. O falcão voava livre, provocando constantemente o seu jovem amigo, debicando-lhe a roupa e logo fugindo, numa brincadeira alegre nunca vista numa ave de rapina. Ele, que o encontrara ainda minúsculo e ferido na floresta, afeiçoara-se de imediato aquela criatura, partilhando com ela os pedaços de pão da refeição da manhã, levando-a aos ombros nas suas tarefas diárias.
Inseparáveis.
 
Dirigiam-se a norte, em direcção ao grande lago, a planície das neblinas. Não era local de passagem, muito menos de destino para qualquer caravana, aldeões ou mercadores. O lago era vazio de peixes, escuro e pouco convidativo. As histórias exageradas dos aldeões repetiam vezes sem conta a existência de grandes monstros alados, de olhos de fogo e asas de morcego, que capturavam sem piedade todos os incautos que por ali se atreviam a pernoitar.
Mas os rastos de destruição dos rebanhos apontavam para ali… e para ali se dirigiam.
 
Um ruído estridente fez-se ouvir, subitamente.
Apressados, apearam dos cavalos, agrupando-se em redor do rei, as espadas procurando o perigo, os cavalos relinchando de pavor.
- Ali, atrás das árvores - gritou alguém - Ali…
Olharam, talvez uma sombra, pouco mais que isso. Era simplesmente algo que encobria a luz, um vulto enorme e ainda sem forma.
- O rei… protegei o rei - gritou um dos cavaleiros.
E um segundos depois, o vulto gigantesco sobrevoou-os, as asas abertas deslocando o ar frio à sua passagem.
- Um dragão - murmuraram… é um dragão…
 
Pouco havia a fazer, e menos tempo ainda… investida após investida, os cavaleiros do rei caíram por terra, as armas ridiculamente inúteis contra o bafo quente e as garras da poderosa criatura.
Num canto, junto aos cavalos, o moço falcoeiro segurava ainda o seu amigo falcão, nervoso e ainda com a venda na cabeça. Tinha que o libertar.
Soltou o cordel que lhe prendia o capuz e de imediato o jovem falcão recuperou a vista.
E então… algo aconteceu.
 
A criatura imobilizou-se nos céus, como se algo a tivesse feito parar a sua sede de destruição. Volteava a cabeça numa e noutra direcção, como se procurasse algo. Rugiu, um som cavo e forte, como um chamamento.
O pequeno falcão olhou ainda uma última vez para o seu jovem amigo, abriu as asas e ergueu-se nos ares. E … enquanto subia, uma luminosidade desprendeu-se-lhe das penas, envolvendo-o numa aura de luz azulada. O corpo, elegante e esguio, alongou-se ainda mais, ganhou volume, uma cauda, as asas soltaram as penas e a figura inconfundível de um jovem dragão surgiu-lhes bem por cima das suas cabeças, voando desajeitado em direcção ao monstro que ainda pairava sobre eles, bem alto.
A jovem cria, naquele súbito e inesperado encontro com a mãe perdida… soltou um grito agudo, um som de júbilo, roçando a cabeça escamosa de encontro ao longo pescoço da progenitora.
Segundos mais tarde, desapareciam em direcção à neblina do lago.
 
O jovem falcoeiro, aturdido, permaneceu sentado no seu canto, enquanto os cavaleiros feridos se entreajudavam, no campo de batalha improvisado.
E por um momento, por um simples e breve momento, veio-lhe à memória aquela lembrança do pai adoptivo, quando ele lhe contava que também o descobrira, abandonado entre trapos, à porta do mosteiro, numa fria noite de Inverno.
 
O reencontro.
Ao menos, o seu jovem amigo… já tivera o seu.

 

publicado por entremares às 12:08
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Sábado, 10 de Outubro de 2009

Baile de máscaras

 

 

-Estás nervosa?
 
Que pergunta. Claro que estava nervosa.
Ajeitou melhor a pequena máscara, bordejada de lantejoulas cor de pérola. Subitamente, sentiu-se uma autêntica princesa de tempos idos - o vestido de seda drapeado, as fitas, a pequena sombrinha branca, o tecido a arrastar pela madeira polida do salão, o cabelo arranjado num penteado extravagante que alguém garantira ser o autêntico aspecto das cortesãs de Luís XIV, o rei sol.
 
- A duquesa de Orleans - anunciou o funcionário da porta, vestido a rigor como se de um autêntico serviçal da corte se tratasse - … e a sua sobrinha, a menina Jaqueline de Orleans.
 
- Tinhas que arranjar-nos uns nomes tão pomposos?
A amiga ria-se, ocultando o rosto com o leque.
- Claro… tu vais ser a duquesa… eu contento-me em ser a tua sobrinha… e olha, até creio que foi uma escolha muito original.
Claro. Aquela amiga sempre fora assim… um pé fora do convencional, o corpo inteiro fora do normal, criativa, alegre, contagiante. Não fosse ela… não estaria ali.
Sentaram-se num dos cantos do salão, completamente a transbordar de fantasias de piratas, princesas, mágicos, fadas, personagens históricas, astronautas, monstros… enfim, de tudo um pouco.
O animador de serviço gritou qualquer coisa, que ninguém conseguiu ouvir. A música começou a tocar e instantaneamente, dezenas de pares de mascarados encheram a pista de dança, num rodopio de cores e fantasia.
Um espectáculo para os olhos.
 
- A menina dança?
 
Jaqueline de Orleans olhou para o estranho pretendente, vagamente parecido a uma figura bem conhecida de um filme de ficção científica, um ser enorme e peludo, de olhos doces e expressão solitária.
Mas o convite não era para ela.
Disfarçadamente, deu uma cotovelada à amiga.
- É para ti…
A duquesa de Orleans sorriu. Baile de máscaras? O que se fazia num baile de máscaras? Dançar, pois evidentemente.
Levantou-se, esticando graciosamente a mão.
- Por quem sois, senhor…
- …Frederico, minha dama… - completou ele - Frederico…
 
Dançaram.
Uma valsa, uma polka, um tango… e depois perderam-lhe a conta.
Ele era divertido, e apesar da estranha máscara que escolhera, a alma sorria-lhe de uma forma transparente. Ela, a princípio insegura, sentia-se bem nos seus braços, como se de repente tivesse encontrado um ponto de apoio, contou-lhe histórias de infância, enquanto rodopiavam pela pista de dança.
A meio da noite, ele atreveu-se a dizer-lhe como a achava linda e ela sorriu, de livre e espontânea vontade, ao galanteio.
Tacteou-lhe o rosto com a mão, demorando-se propositadamente na testa e nos olhos.
- Tens olhos de mentiroso - disse-lhe ela - porque isso é que estás a dizer-me essas coisas todas…
Ele riu-se, puxando-a com ímpeto num passe mais arrojado.
- Eu, mentiroso? Minha dama… um cavalheiro na vossa presença… nunca poderia mentir…
 
Na pequena varanda virada para o jardim, apanhavam o ar fresco da noite.
- Como te chamas? Ou preferes ser sempre a … duquesa de Orleans ?
Ela disfarçou o nervosismo, apoiou-se no parapeito.
- Madalena… sou a Madalena, duquesa de Orleans. Pelo menos, por esta noite…
 
Ele ficou a olhar para ela, vendo-a contemplar o vazio, como se estivesse muito longe, num outro lugar. Ou então era só a máscara de lantejoulas, que lhe conferia aquele ar enigmático, quase misterioso até.
 
- Madalena… tenho que te confessar uma coisa… ou melhor… duas.
Ela tocou-lhe de novo no rosto, os dedos desceram-lhe aos lábios, como se o pretendesse silenciar.
- Não… - continuou ele - eu preciso mesmo… de te dizer…
- Está bem… podes dizer…
 
- Eu… eu não estou mascarado…. Isto não é nenhuma máscara… eu sou mesmo assim… sempre fui assim, com este aspecto estranho…
- Eu sei… - antecipou-se ela.
- Tu sabes?
- Sim… sempre soube.
- Mas como?
Ela percorreu-lhe de novo o rosto, desta vez com as duas mãos, acariciando-lhe os olhos.
- Sabes… quando nascemos sem ver… os outros sentidos ficam muito mais despertos… eu posso não te ver com os olhos… mas com as mãos, há muito que te decorei o aspecto…. Desde a primeira valsa…
 
Fez-se silêncio. Ele suspeitara desde o primeiro momento…. Mas não se atrevera a perguntar. O olhar distante, o andar hesitante… mas não encontrara oportunidade, estivera demasiado inebriado em ouvi-la, tudo o resto passara a uma importância minúscula.
 
E ela continuou.
 
- … E quanto à segunda coisa que me querias confessar… sim, a resposta é sim…
- Mas tu não sabes… - ele ainda tentou.
- … Não sei… se me ias perguntar se eu deixaria que me beijasses, é isso? Agrada-me muito desiludir-te… e a resposta continua a ser… sim.
 
 
Nota: Porque será que nunca nos sentimos suficientemente "atraentes" para a outra parte?

 

publicado por entremares às 08:59
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Sexta-feira, 9 de Outubro de 2009

Rafa

A todos os amigos, aqui à volta da fogueira.

 

Ontem foi um dia triste, aqui em Elvas. A escola esvaziou-se, foram todos acompanhar o Rafael até à sua ultima morada. Não devia ser permitido que uma alma jovem, uma criança de 17 anos, pudesse morrer num estúpido acidente de moto.

Ainda não fui visitar os pais, nem sei o que lhes diga. Conheco-os bem, conhecia-o a ele, as minhas filhas faziam parte do seu grupo, um grupo unido, alegre. O que se pode dizer a um pai e uma mãe, depois de enterrarem um filho?

Não sei.

Tentei escrever algo, mas não saiu nada.

Isto não é um post, nem um conto. É só um desabafo.

 

Um abraço para todos vocês, amigos à volta da fogueira.

Alguém me oferece um café?

Hoje nem tive disposição de o fazer aqui para vocês.

publicado por entremares às 08:17
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Quarta-feira, 7 de Outubro de 2009

Aventuras e desventuras...

 

 

Era uma vez um rato.
Sabem? Um ratinho de cidade, daqueles que moram nos buracos das paredes, espreitando as pequenas oportunidades de assaltar a despensa ou os restos das refeições esquecidos sobre as mesas.
Este ratinho em especial vivia acompanhado da família - numerosa, como todas as famílias de ratinhos - num belo casarão, uma daquelas casas antigas com cave, arrecadações e sótãos cheios de baús misteriosos, partilhando aquele espaço imenso com a família Silva, o cão Tobias e o gato Tareco.
A família Silva, igual a tantas outras, era constituída pelo pai João, a mãe Teresa, o Roberto e a Aninhas, sem esquecer a avó Fernanda, que ali pernoitava todos os Invernos.
A família dos ratinhos - doze, no total - não tinha a preocupação humana de baptizar os seus elementos, conheciam-se pelo erguer dos bigodes, pelo cheiro do pelo cinzento, pelos guinchos autoritários do pai ou cauda pontiaguda da mãe. E, claro está que, como em todas as famílias… existia um certo ratinho um pouco mais traquinas do que todos os outros.
Era o mais novo da ninhada, talvez o mais mimado.
Cresceu a pensar que o mundo inteiro era um gigantesco parque de diversões, protegido pela astúcia do pai, a camuflagem dos irmãos, a ternura da mãe.
E claro que, quando num belo dia descobriu um maravilhoso pedacinho de queijo, a poucos centímetros da porta de casa… nem hesitou.
 
Como era saboroso.
A aventura, o sair do ninho, do seu buraquinho, sozinho… explorar todo o corredor, espreitar a cozinha, a despensa. Claro que não podia esquecer o Tobias ou o Tareco, mas o cachorro passava os dias a dormitar no tapete, junto à lareira… e o Tareco era um vadio, sempre a miar em telhados da vizinhança.
E a aventura… ah…. Que prazer incomparável…
 
Outro pedacinho de queijo? Milagre.
Esgueirou-se pela estreita abertura - era ele que estava a engordar ou a abertura estreitara ? - e lançou-se sobre o seu petisco. Ainda saboreava aquele néctar dos deuses… e já os seus olhinhos brilhantes descobriam outro pedacinho, a bem curta distância, junto da porta da cozinha.
- Hoje é o meu dia de sorte - pensou - os miúdos deixaram cair o lanche, só pode ser… aproveitemos, portanto…
 
E outro… e outro… - ainda espreitou se algum dos irmãos estaria a ver, não queria partilhar a sua descoberta com mais ninguém - mas não… o corredor permanecia em silêncio, as luzes apagadas.
Já na despensa, o delírio final. Dois… três… quatro, quatro deliciosos pedaços, perfumados, tenrinhos, com um aroma que lhe enchia por completo as narinas, deixando-o a salivar de antecipado prazer.
 
- Não consigo… não consigo mais… rebento… e ainda falta um pedaço…
Ainda pensou escondê-lo, para voltar mais tarde. Mas a barriga inchada, arrastando pelo chão, não lhe permitia grandes movimentos e esforços então… nem pensar.
Esfregou os bigodes, pleno de satisfação.
 
- Miau…
 
Miau? Ouvira bem?
Um miau… habitualmente significava … não, não podia ser, o Tareco devia andar a saltar pelos telhados, como sempre.
Virou-se lentamente, os bigodes a tentar descortinar algum odor familiar. Não precisou de se esforçar muito.
 
A curta distância, Tareco, o gato, segurava ainda entre as patas dois pedacinhos de queijo, que já nem precisara de utilizar para a sua engenhosa artimanha.
Miau… - fez ele novamente.
Gatos não riem - pensou o nosso ratinho - mas era capaz de jurar que aquele gato, em particular… estava mesmo a rir. E sentiu de repente um nó na garganta.
 
Correu, correu, correu… e o gato Tareco, tranquilamente, sem apressar o passo nem fazer esforço algum para o apanhar, lá foi atrás dele. Contornou a mesa da cozinha, derrapou na porta, atirou-se corredor fora, em direcção ao buraquinho estreito do lar, doce lar.
Mergulhou velozmente… mas… só a cabeça conseguiu transpôr a estreita abertura. O corpo, rechonchudo e lustroso, saciado de queijo, jamais conseguiria ultrapassar aquele último obstáculo, que o separava da salvação.
 
A passo lento e despreocupado, o gato Tareco lá se aproximou e com a pata, puxou-o para fora, segurando-o no ar pela cauda.
Lambeu os beiços, feliz.
 
Miau… - ronrronou novamente de prazer.  

 

publicado por entremares às 11:47
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Terça-feira, 6 de Outubro de 2009

Dás-me a tua mão?

 

 

- Dás-me a tua mão?
 
Um pedido simples. Dito de forma simples, quase num murmúrio.
Ela estremeceu, como se o frio da noite tivesse descoberto subitamente um atalho para a alma.
Dar-lhe a mão?
Assim... tão de repente?
 
Caminhavam pela praia, já bem distantes do barzinho iluminado e dos sons do piano. A lua, semi encoberta por nuvens passageiras, iluminava-lhes os passos, deambulantes, ora tocando a espuma das ondas, ora afastando-se para o areal.
O silêncio, aqui e ali interrompido pelos gritos das aves nocturnas, era leve e molhado, saboroso. Ela sentiu que ele não esperava palavras, que lhe apreciava os silêncios, porque tudo fazia parte daquele quadro que nem ela ainda compreendia bem, porque tudo era confuso, dificil... e ao mesmo tempo delicioso.
Para onde caminhavam?
Em que mar findaria aquele rio de paixão em que ambos haviam mergulhado, pensando simplesmente... estar a salpicar o rosto de água fresca?
Não fora só o rosto.
A água do rio lavara-lhes o olhar de tristezas passadas, tratara-lhes as cicatrizes antigas de outras vidas, despertara em ambos sensações há muito esquecidas, amordaçadas no baú dos tempos antigos.
 
E agora... ali estavam eles, incrédulos e indecisos, rasgando medos, caminhando sózinhos na escuridão da noite como se tudo fosse a primeira vez – eles, ambos já vividos, repetidos, usados e abusados... como pessoas em segunda mão, procurando ainda um lugar ao sol.
 
Lá longe, a vida continuava. A dos outros e a deles próprios.
Ambos sabiam disso.
Tal como sabiam que os sonhos só tinham razão de existir.... para ser vividos.
E a medo... haviam chegado aquele ponto, o ponto onde ambos percebiam que iriam nadar juntos até à foz do rio.... fosse ela qual fosse.
 
- Dás-me a tua mão? – voltou ele a perguntar.
Dar-lhe a mão?
Sorriu.
 
- A mão...está bem... dou-te a mão. Também me queres o coração?

 

publicado por entremares às 14:24
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Segunda-feira, 5 de Outubro de 2009

Aquela janela verde

 

Fotografia gentilmente cedida pelo amigo João Meneres – obrigado João
http://grifoplanante.blogspot.com
 
 
Aquela janela verde. Como estaria ela agora?
Ainda existiria?
 
Rua das Flores, número dez, lembrava-se bem. A parede azul e branca, os batentes da porta com a forma de cabeças de leões, a chamimé de tijolo sempre a fumegar, as buganvilias vermelhas a espreitar pelo pátio.
Teria a rua ainda aquele velho empedrado, de pedras já gastas e luzidias? Ainda existiriam os mesmos candeeiros de ferro forjado, pendurados dos tectos? E o poço do bispo, ao fundo da rua... ainda alimentaria os canteiros de flores da dona Beatriz, o que seria feito dela?
Os olhos pousaram sobre os rostos da fotografia.
Um par de miúdos traquinas, só isso. Simplesmente, um par de miúdos... um aceno para a fotografia, ela a olhá-lo embevecida, ele despreocupado a posar para o fotógrafo casual.
 
Era inverno, ainda se cantavam as janeiras.
Ele chamava-se Bernardo, ela Alzira.
Ele brincava com carrinhos de madeira, heróis de papelão, bolas e fisgas de atirar aos pombos. Ela coleccionava bonecas e vestidos de folhos, andava sempre de vestidos de folhos.
Ele não reparara nela, ele não reparava em nada, para além do seu pequeno mundo de brinquedos, imenso quando se tem dez anos. Ela – Alzira – decidira sossegar aquele cantinho do coração que batia mais forte, sempre que ele se voltava para trás, nos bancos da escola. E perguntara-lhe simplesmente – Posso ir brincar contigo, depois da escola?
 
Pousou o album de fotografias e ajeitou os óculos. Ardia-lhe a vista, de cada vez que tentava destrinçar melhor os pequenos pormenores das fotografias – talvez por isso já a incomodava o tricot, coisa tão miudinha.
Um leve assobiar desviou-lhe o olhar.
- És muito teimoso, Bernardo, hás-de ser sempre teimoso... – e ajeitou-lhe melhor o cobertor sobre o peito. Mas o ressonar persistiu, aquele assobiar baixinho que ela já conhecia de há muito.
Quanto tempo se passara entretanto, desde aquela fotografia?
Sessenta anos? Talvez mais.
O fotógrafo ocasional, o tio do Bernardo, já falecera há muito, oferecera-lhe aquela fotografia num dia de aniversário, numa das suas visitas à aldeia.
Fora a primeira fotografia dos dois juntos, muito antes de todas as outras.
Sorriu, embevecida, a olhar para ele, como naquela mesma fotografia.
 
Como era lindo, mesmo a dormir, o seu Bernardo...
 
 
 

 

publicado por entremares às 06:44
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Domingo, 4 de Outubro de 2009

Quando a lua nascer...

 

 

Chamava-se Felicia e era um espírito das árvores.
Muitas vezes, ao cair da noite, a coberto das sombras, desprendia-se dos troncos ressequidos e vagava pela floresta, tocando as folhas, afagando os arbustos, cumprimentando os pequenos rebentos, beijando as flores caídas e os musgos escondidos.
Quem a visse assim de perto, deslumbrar-se-ia com a beleza etérea dos seus olhos, de um verde esmeralda como os rios, a pele azeitona clara, o cabelo emaranhado de ervas verde e polvilhado de folhas secas.
Naquela noite, Felicia deambulava contudo com um propósito.
 
Com a ponta dos dedos espalhou um pouco de polen acastanhado sobre os olhos, esfregou os lábios com a cor das amoras silvestres, contemplou o seu reflexo nas águas tranquilas do lago, sob a luz das estrelas.
A lua não tardaria em surgir... e a lua era o seu ponto de encontro, a hora certa para o compromisso que não podia mais adiar.
Caminhou ao de leve pelas veredas, as folhas deslocando-se à sua passagem, como se uma brisa invisivel lhe abrisse caminho por entre a densa vegetação, rumo ao seu destino.
Ele pedira-lhe – Vem ter comigo. Estarei no lago, quando a lua nascer, à tua espera...
 
Ela iria.
O espírito do bosque era afável, sonhador, harmonioso no canto. Cantara-lhe ao ouvido poemas de amor e ela deixara que ele a seduzisse, que lhe lavasse os pés nas águas do lago, que lhe penteasse os cabelos com os aromas do bosque.
O bosque do seu principe encantado ocupava toda a outra margem do grande lago; de um lado, a floresta, ainda primitiva, quase virgem – do outro lado, o bosque, já ralo de grandes árvores, pasto de animais selvagens e cobiça dos homens das aldeias vizinhas.
Ele dissera-lhe: O meu fim está próximo, pressinto-o... preciso de te ver, enquanto ainda é tempo...
Ela percebera-lhe a urgência, o soluço de pânico mal disfarçado na voz.
E tranquilizara-o, com um abraço terno – Eu irei... hoje à noite, quando a lua nascer... eu prometo...
 
Correu, sentiu que a lua nasceria dali a pouco.
Ofegante, percorreu os últimos metros com uma ansiedade crescente no peito. Algo não estava bem... e não conseguia perceber o quê. Sentia simplesmente a angústia aumentar, inexorável, À medida que começava a vislumbrar as águas do lago, por entre a vegetação.
Finalmente, molhou os pés.
 
A visão de horror prostrou-a de joelhos, sem forças para um único lamento.
O outro lado do lago, na véspera um frondoso bosque de ervas altas e arbustos viçosos transformara-se subitamente num enorme parque de gigantescas máquinas metálicas e homens em movimento, aos gritos, fogueiras a iluminar a noite... e um sem número de enormes troncos amontoados junto ao rio, prontos a descer até à foz.
 
Esticou a mão para o vazio, à procura...
Nada mais havia para lhe tocar a ponta dos dedos, senão o frio da noite.
Escondeu a cabeça entre os braços e por ali se ficou, chorando em silêncio.
Como é que um dia, um simples dia, poderia ser afinal... tão tarde demais?

 

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publicado por entremares às 09:42
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