Quinta-feira, 30 de Julho de 2009

Um dia que mudou o mundo...

 

- Atenção… inicio da contagem decrescente…

 

Aproximava-se o grande momento. Durante os últimos cinco anos, treinara afincadamente todos os pormenores, estudara todas as variáveis, todas as sequências, todas as hipóteses de falha, todas as simulações possíveis. Treinara o corpo e o espírito, dominara a ansiedade, a falta de sono, o cansaço, a fome e a sede. Dominara a angústia, a claustrofobia, a solidão da família, o vazio dos espaços fechados.

Ultrapassara todas as provas.

 

- 10… 9… 8…

 

O que sentia naquele preciso momento? Impossível de descrever. Dentro de breves instantes, o Homem libertar-se-ia do seu berço, rasgaria os céus e tentaria alcançar a lua, a mesma lua que todas as noites lhe povoava o espírito de sonhos e desejos antigos… desde criança.

Por isso se tornara astronauta. Para um dia poder tocar a lua, libertar-se do seu próprio peso e flutuar no vazio, poder ver ao longe o planeta azul, poder contemplar o nascer do sol de um modo que ninguém até então poderia imaginar.

Era esse o objectivo da sua vida. Sempre fora.

 

- 7… 6… 5…

 

Ao longo do rio, uma multidão ansiosa aguardava o momento, aquele momento mágico em que um clarão enorme ofuscaria tudo e todos, para que logo depois se pudesse observar a ascensão do enorme foguete, rumo ao azul escuro das estrelas.

 

- 4… 3… 2… 1… Ignição…

 

O ruído foi tremendo. Uma trepidação que se propagava pelas paredes, pelo chão, uma onda de choque acompanhada de uma claridade irreal, de um branco cego.

Vagarosamente, a nave equilibrou-se sobre si própria, rugindo e vomitando o fogo dos infernos. Depois partiu, ganhando velocidade e altura, um ponto luminoso cada vez mais distante no céu, uma coluna de fumo branco a assinalar a fuga dos primeiros homens para o espaço.

 

Baixou a cabeça.

A imagem do televisor continuou imperturbável, mas ele já nem a via.

Durante os últimos cinco anos, fora astronauta, treinara aquele momento como o mais importante de toda a sua vida. Sabia todas as sequências do arranque, sabia exactamente o que os colegas estariam a fazer, dentro da Apollo 11, naquele mesmo instante.

Secretamente, desejou … o inconfessável; que algo sucedesse à equipa principal, que algum dos colegas adoecesse, que não conseguisse ultrapassar alguma prova… qualquer coisa que permitisse que ele e os restantes elementos da equipa substituta… pudessem assumir o papel principal… e rumar à Lua.

 

Não o conseguiu.

Continuou a ser o comandante da equipa substituta, a entrar no simulador e a realizar todos os testes, todas as provas… mas nunca… nunca chegaria a tocar a lua.

 

- Boa sorte, rapazes… - ainda conseguiu murmurar – tragam-me uma pedrinha da lua…

publicado por entremares às 11:39
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Quarta-feira, 29 de Julho de 2009

A voz do Além

 

- O 21… vai sair o 21…

Aquela voz continuava a martelar-lhe o espírito, podia ouvi-la distintamente. Uma voz masculina, muito calma e serena, daquelas vozes hipnóticas em que é impossível não acreditar.

Olhou para as fichas que tinha na mão. Uma miséria.

Portanto… perdido por cem, perdido por mil… se havia uma voz do Além a aconselhá-lo a jogar… que tinha ele a perder?

Perder mais já era quase impossível.

Colocou uma ficha de 50 sobre a casa 21.

 

Um minuto depois, ainda estava de boca aberta, a tentar compreender o sucedido. Pois então não saíra mesmo o 21, e a sua mísera ficha de 50 não se havia transformado miraculosamente num bom punhado de fichas de 500 ?

- O 34… agora vai sair o 34…

Novamente a voz. A mesma voz hipnótica, talvez já não tão calma, percebia-se até um leve entusiasmo.

Desta vez, ele já nem se preocupou em tentar compreender. Para quê?

Alguém iria acreditar que uma voz do Além lhe estava a segredar os números vencedores da próxima roleta? Se nem ele próprio acreditava…

Com um sorriso nos lábios, empurrou um punhado de fichas para a casa 34.

- 3000 no 34 – quase que gritou, entusiasmado. – Hoje é o meu dia…

Os jogadores ao lado olharam-no pelo canto do olho. Claro, todos os dias aparecia sempre alguém assim, a pensar que era o seu dia…. E depois saíam dali todos de bolsos vazios, com uns copos a mais, a reconhecer que talvez afinal se tivessem enganado no dia, nos sinais…. outro dia seria…

 

Mas aquele dia… era mesmo o dia.

- Sai o 34… único vencedor, o senhor do colete azul, a aposta de 3000 é vencedora…

Gritos de espanto, alegria.

Os curiosos avolumam-se por todos os lados, rodeiam o felizardo.

 

- O 7… a próxima é o 7…

A voz do Além, antes calma e serena, transparecia agora um tudo nada de ansiedade, nervosismo até.

Ele compreendia. Mesmo ele, com os pés na terra, mal conseguia fazer as contas de cabeça, a digerir o chorudo prémio que acabara de receber, quanto mais pensar … não, não conseguia fazer a conta…

 

- Aposto tudo no 7… – gritou, provocando um “Oh” de espanto generalizado.

O funcionário do casino, já por demais habituado a cenas semelhantes, permaneceu impávido, a mesma voz fria do costume.

- Aposta única do cavalheiro de colete azul… 66.750 apostados no 7…. Vai rodar…

 

A bolinha de madeira rodopiou de novo sobre a roleta. Um silêncio angustiante pairava sobre a mesa… à medida que a bolinha perdia velocidade, cada vez mais lenta, aos saltos entre os números…. 18… 7… 24… 7…  até que se deteve.

 

- Sai o 8… - exclamou o funcionário do casino. – Nenhuma aposta vencedora, sai à banca… meus senhores, podem fazer as vossas apostas…

 

Ele ficou a olhar para a roleta, atordoado.

O que estava a acontecer?

Como era possível?

 

- Que droga… pensei mesmo que seria o 7… - falou novamente a voz do Além, dentro da sua cabeça, novamente com o mesmo tom calmo e sereno de sempre.

 

publicado por entremares às 15:58
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Terça-feira, 28 de Julho de 2009

Conversas curtas

 

 

Ela - Hum…
 
Ele - Estás a pensar?
 
Ela - Não… estou só a ….
 
Ele - Meditar?
 
Ela - Não, eu só…
 
Ele - Concentrar?
 
Ela - …
 
Ele - Não dizes nada?
 
Ela – Digo sim. Estou só a tentar adormecer… posso?
 
 
Moral da história: Nem sempre o diálogo é o melhor remédio ?

 

publicado por entremares às 17:24
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Segunda-feira, 27 de Julho de 2009

Era uma vez um Mestre - II

 

 

Certo dia, o rei requisitou a presença do Mestre à sua presença.
- Vossa majestade… - cumprimentou o Mestre, com um vénia - chamaste-me à vossa presença…
- Chamei sim, Mestre… preciso de um conselho vosso… vinde, vamos caminhar um pouco…
Saíram os dois para o jardim.
- Mestre… -começou o rei - já me conheceis há muito tempo… e sabeis que tenho tentado, ao longo de toda a minha vida, fazer o melhor para o reino…
- É verdade, majestade… temos vivido tempos de grande prosperidade…
- Sim, Mestre… prosperidade… e também paz. Os campos são generosos, o gado aumenta a cada dia que passa, os aldeões não passam fome… mas não é sobre isso que preciso do vosso conselho…
O Mestre sorriu, como se quisesse transmitir-lhe algo.
- Mas também suponho que havíeis percebido isso…
- Majestade… não seria correcto da minha parte antecipar-me às vossas palavras…
Foi a vez do rei se deixar rir, bem disposto.
- Mestre… na verdade, vós sois… único. Mas adiante… não vos quero tomar mais tempo que o necessário… preciso da vossa opinião sobre a minha sucessão…
- Um assunto delicado, majestade…
O rei perdeu o sorriso. A sucessão ao trono era, na verdade, um assunto delicado. Não por deixar em causa a continuação da linhagem ou a segurança do reino… mas simplesmente por ter que decidir entre quais dos seus dois filhos gémeos… pesaria o fardo da coroa.
- São os dois uns óptimos filhos… ambos plenos de virtudes e bons amigos… o que me deixa deveras apreensivo… necessito da vossa opinião, Mestre…
- Majestade… não sei como vos poderei ajudar, em tão delicada escolha… mas decerto haveis já reflectido bastante sobre o assunto…
- Reflectir? Mestre… se houvera uma guerra com algum dos nossos vizinhos, eu entregaria de olhos fechados o reino ao príncipe Alberto, o melhor cavaleiro que este reino já conheceu… mas se precisasse de transformar uma ruína num palácio, ou multiplicar uma semente por cem… eu escolheria sem a menor dúvida o príncipe Damião…
- Uma escolha difícil, majestade… uma vez que as virtudes se completam…
- Mestre… se eu pudesse … ambos são o sucessor perfeito… e ainda por cima, são excelentes amigos, para minha paz e fortuna.
O Mestre sorriu de novo, e estendeu o dedo na direcção do rei.
- Majestade… vós sois na verdade deveras perspicaz… acredito que já haveis descoberto a vossa resposta…
- Já descobri? Mas eu…
O mestre continuou a sorrir, os olhos brilhantes. O rei deixou-se contagiar por aquele brilho e passando a mão pela barba grisalha, murmurou:
- Mestre… creio que me haveis dado uma excelente ideia…
 
O mestre abanou a cabeça, afirmativamente. Afinal de contas, que importância teria de onde partisse a ideia?
- Majestade… sempre haveis sido um monarca justo e sensato … nunca duvidei que a vossa escolha fosse a mais sábia …

 

 

 

publicado por entremares às 10:20
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Sábado, 25 de Julho de 2009

O comboio apitou três vezes...

 

- Desculpe, dá-me licença?
A mulher chegou-se para o lado, contrariada.
A muito custo, lá conseguiu subir os três degraus da carruagem, uma mão a segurar o corrimão de ferro, a outra o enorme saco de lona militar, desta feita mais pesado que o habitual.
Final de mês, a mesma azáfama de sempre; os táxis cheios, as filas intermináveis para comprar um simples bilhete, o bar da estação a abarrotar de emigrantes e soldados de fim de semana, os comboios cheios… enfim, o costume. Nada a que o soldado Matias, a prestar serviço no Porto, não estivesse habituado.
Um silvo agudo, contínuo, encheu o ar. O primeiro apito.
A enfermeira Maria voltou a espreitar pela janela entreaberta. Nada. Nem sinal dele.
- Não vai conseguir chegar a tempo… - ainda pensou.
Talvez conseguisse.
Aquela viagem até Coimbra não estava programada. Mas nem sempre a vida se programa, e ela trocaria aquela viagem de bom grado. Ir ao enterro do pai, que já não via desde o Natal… não… sem dúvida que era um motivo triste para voltar à terra que a vira nascer.
E o marido, onde estaria o marido, que nunca mais chegava?
- Ah, João, apressa-te… que ainda perdes o comboio…
No banco em frente, alheio à tristeza da enfermeira, um rapaz ainda jovem, de rosto tisnado pelo sol e barba mal feita, segurava com força uma mochila. Os olhos fitavam um ponto distante, bem para lá da estação de Santa Apolónia, bem mais longe que o bulício do trânsito da capital.
O sul de França era o seu destino. Talvez por dois, por três anos, quem saberia?
O seu Alentejo não conseguia dar trabalho a ninguém e, da sua aldeia das Pias, todos os braços fortes já haviam partido, deixando para trás os velhos, as mulheres e as crianças, à espera de cartas para matar saudades e de algumas notas para aliviar a miséria.
As mãos apertaram com mais força a alça da mochila, quando o apito estridente da máquina soou de novo pela estação.
O segundo toque. Uns minutos mais para os retardatários.
O "Quim bolas", como lhe chamavam os colegas, levantou-se da cadeira, pagou o café e dirigiu-se pelo passadiço até à composição.
O homem da bandeireta acenou-lhe.
- Quim bolas, és tu que levas hoje a máquina? Julgava-te de férias…
- Ora viva, Tónico…. isso de férias é só para quem pode… vou ver se consigo ganhar mais algum… sempre são umas horinhas a mais no final do mês…
O guarda ergueu a bandeireta e apitou.
- Vai com Deus, Quim bolas, vai com Deus…
Subiu os degraus de ferro até à cabine. O maquinista Joaquim Freire, Quim bolas para os amigos tinha mais uma viagem pela frente.
- Está tudo em ordem? - perguntou ao técnico, que acabava de verificar os últimos mostradores do comando.
- Está como nova, Quim… é toda tua…
 
Sentou-se aos comandos. Perderia o aniversário de casamento, no dia seguinte. Mas os tempos estavam ruins… e não havia como deitar fora aquelas pequenas oportunidades, quando surgiam. Uma viagem extra, em tempo de férias… renderia uma boa quantia, talvez até fosse suficiente para trocar o velho frigorifico… ou o fogão.
O comboio estava cheio.
Decidido, carregou no botão amarelo e um longo silvo voltou a encher os ares. O terceiro apito.
A vida entraria em suspenso, durante um breve intervalo.
Lentamente, as enormes rodas de ferro moveram-se, arrastando a meia dúzia de carruagens estação fora, os rostos à janela, mãos acenando, gritos, lágrimas, adeus.
Era só mais uma viagem, como tantas outras.
Só mais um dia, no decurso de todas as vidas a bordo.
 
Boa viagem.
 

 

publicado por entremares às 20:23
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Quinta-feira, 23 de Julho de 2009

A balança das almas

 

O relógio da parede marcava as onze.

Imperturbável, alheio a pressas, o pêndulo de bronze repetia os mesmos movimentos de sempre, indiferente ao facto de se aproximar mais um final de ano onde, da forma costumeira, repetiria doze badaladas.

 

O pastor Josué encontrava-se sentado na sala, no velho cadeirão de pele. À sua frente, a pequena mesinha de pés curtos, habitualmente pejada de livros e revistas, estava agora praticamente vazia, com aquele estranho objecto metálico alinhado bem ao centro.

Uma balança.

 

Cuidadosamente, retirou da sacola os dois grandes frascos de vidro, em tudo iguais, excepto na cor das respectivas tampas; uma branca, outra negra. No interior de ambos, uma quantidade enorme de pequenas bolas de papel amarrotado saltitavam, empurrando-se umas contra as outras. À primeira vista, ambos os frascos teriam um conteúdo em número muito semelhante das pequenas bolas de papel.

 

Com extremos cuidado, abriu o frasco da tampa branca e lá foi vertendo o seu conteúdo para um dos pratos da balança, tentando que esta não transbordasse. Logo de seguida, repetiu o processo para o segundo frasco, vertendo as bolinhas de papel amarrotado para o outro prato da balança.

 

Suavemente, a balança desequilibrou-se e um dos pratos tombou sobre a mesa.

O pastor Josué ficou a olhar para ele, a testa franzida por uma ruga de inquietação.

Outra vez?

 

Há quanto tempo repetia ele aquele ritual, na noite de 31 de Dezembro? Dez, talvez onze anos…

E mais uma vez – a terceira consecutiva – a balança tombava para o frasco da tampa negra, o frasco onde Josué depositava, dia após dia, pequenos papeis amarrotados, retirados do bloco de memorando; por cada boa acção relevante… um papelinho amarrotado para dentro do frasco de tampa branca, para cada arrependimento, para cada falhanço… um papelinho amarrotado para o frasco de tampa negra.

 

- Para o ano, será diferente… - murmurou para si mesmo.

 

A balança não o ouviu. Indiferente ao peso das almas, limitava-se a pesar os prós e os contras das existências, independentemente dos sentidos que o pastor Josué atribuía aos pequenos papelinhos amarrotados.

 

- Para o ano, será diferente…. – voltou a repetir.

 

 

publicado por entremares às 12:56
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Terça-feira, 21 de Julho de 2009

A boa hora...

 

 

- Vá… vai tu primeiro…

- Eu ? Porquê? Eu sou rapariga, tu és rapaz… tu tens que ir à frente…

- Mas eu sou… cavalheiro. E além disso, sei que estão à tua espera… em primeiro lugar…

- … Hum… parece-me ver aí uma pontinha de… medo, talvez?

- Medo? Não digas disparates… Os homens não têm medo, isso é coisa de mulheres…

- Convencido… então vá, vamos os dois ao mesmo tempo…

- Ao mesmo tempo? É impossível.

- Se tu já tivesses nome, eu agora rogava-te uma praga… és rapaz… mas és um medricas… mas não faz mal, eu vou à frente…

- Faz favor… e vê se não choras muito, está bem?

- Chorar? Porque não ? Eu gosto de chorar…

- Mas eu não gosto de ver as raparigas chorar… não me sinto bem com isso…

- Não há dúvida… tu nem pareces meu irmão… e muito menos irmão gémeo…

- Sim, sim, sim… vá… vai lá, vai lá, que a mãe já está a ficar impaciente…

- Está bem… desejas-me sorte?

- Oh, irmãzinha… claro que sim… toda a sorte do mundo…. E agora, deixa-te de conversas e vê se nasces… está bem?

- Prometes que vens logo atrás de mim?

- Prometo, está descansada… vá, vai lá…

 

Deu-lhe um beijo na testa e empurrou-a suavemente.

Segundos depois, ouviu-a chorar.

Sorriu, aliviado. Agora chegara a sua vez.

 

- Pronto… chegou a hora… vamos a isto…

 

publicado por entremares às 17:50
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Segunda-feira, 20 de Julho de 2009

Era uma vez um Mestre...

 

Certo dia, um Mestre foi confrontado com um recém-chegado, um rapaz novo, de olhos brilhantes e curiosos, que se chegou a lhe perguntou:
- Mestre... achas que eu já tenho idade suficiente para ser um Mestre?
O Mestre olhou para ele e não pode deixar de sorrrir.
- Mas é evidente que sim... só cada um pode saber... se já tem a idade certa, ou não...
O recém-chegado ficou a olhar para O Mestre, a tentar compreender se acabara de ouvir um “Sim” ou um “Não”.
- É que... todos dizem que sou muito novo... – insistiu.
O Mestre esboçou um sorriso de espanto.
- Não ligues ao que os outros dizem... – disse-lhe então O Mestre – excepto se eles estiverem com a razão, é claro... e a propósito, um Mestre sabe sempre a resposta certa, não é verdade?
- É claro que sim, Mestre. Por isso lhe perguntei se eu já tinha idade suficiente.
O Mestre olhou-o bem nos olhos e colocou-lhe a mão sobre os ombros.
- Claro, claro... mas olha... não achas que... mal tenhas o espírito necessário para ser um Mestre... tu próprio serás o primeiro a descobrir a resposta... para o que me estás agora a perguntar?

 

publicado por entremares às 09:28
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Domingo, 19 de Julho de 2009

O último recanto do mundo

 

 

- O chá está pronto... – gritou uma voz, ao longe.
 
Só podia ser a “sua” Alzira.
Como conseguia ela ainda gritar com aquela energia, apesar dos anos?
 
- Já vou, querida... já vou...
 
Voltou a contemplar o imenso móvel de carvalho, de prateleiras escuras repletas de pequenos frascos de vidros, fazendo lembrar as farmácias do antigamente, um boticário ou, quem sabe, o recanto perdido de algum alquimista.
México, Cuba, Honduras, Brasil, Tunisia, Japão...
Em cada frasquinho, uma pequena etiqueta com o nome de um país – todos alinhados, sem nenhuma ordem em especial.
E, no interior de cada frasquinho... areia.
 
Desde muito jovem que calcorreava o mundo, no principio de mochila às costas, depois no conforto de outros transportes, substituindo a velha tenda azul de campismo pelos hotéis de algumas estrelas. Primeiro, também sózinho. Depois, a dois.
Durante sessenta anos... percorrera todos, mas mesmo todos os países do mundo; alguns até mais que uma vez. E de todos eles trouxera um pouco do próprio país, uma pequeno punhado de areia, areia branca e de muitas outras cores, de praias, dos desertos, das montanhas, da selva – do mundo inteiro.
Num dos extremos da prateleira, um dos frasquinhos exibia orgulhoso : “ Londres, 1949 “
A sua primeira viagem... a sério.
Já lá iam... sessenta anos.
 
E agora? Bem... mais uns meses e completaria os oitenta, um número mágico; redondo.
A sua Alzira, quase dez anos mais jovem, provara o sabor das viagens pelo casamento... uma semana no interior de Marrocos, lembrava-se como se tivesse sido ontem...
E a última... a última viagem terminara na semana anterior, regressados de Timor, o último destino.
 
Sensação estranha, a de poder dizer que já pisara o chão de todas as nações do mundo. E, no entanto, a sua prateleira de frasquinhos de vidro ainda continuava incompleta.
Faltava colocar o frasquinho que, precisamente naquele momento, segurava na mão, ainda vazio.
Faltava a areia de... do seu próprio país. Nunca a colocara na prateleira, vá lá saber-se porquê. Hoje seria o dia.
 
- Alberto... olha que o chá arrefece... – voltou a “sua” Alzira a gritar.
- Já vou, já vou...
 
Ergueu-se do sofá e de frasquinho de vidro na mão, abandonou a sala. A areia, tirá-la-ia do quintal, talvez do canteiro dos cactos.
O último frasquinho.
Mas primeiro, o chá.
A sua Alzira, apesar da idade, ainda não lhe tolerava atrasos.
 
- Já aqui estou, querida... já aqui estou...

 

publicado por entremares às 08:22
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Sexta-feira, 17 de Julho de 2009

A alma gémea... existe?

 

Sonhador_28 acreditava que sim.
Joaninha_azul também.
 
Conheceram-se num fórum, quando ambos pesquisavam quais os melhores alimentos para os periquitos, a sua paixão comum.
Depressa descobriram, para além do nome das sementes preferidas dos pequenos pássaros coloridos, muitas outras coisas… comuns.
Sonhador_28 depressa se transformou em José Maria… e a Joaninha_azul… em Maria de Fátima; ele, ainda inexperiente na criação dos pequenos pássaros, ela já cheia de truques e pequenas artimanhas.
- Mas tu não sabes que a primeira coisa a fazer é colocar os poleiros de madeira? – foi logo a primeira reprimenda – os coitadinhos detestam aquelas coisas de plástico…
O José Maria não sabia. Como também não sabia que os periquitos apreciavam bastante um bom banho, ou umas folhas suculentas de alface. A Maria de Fátima, é claro, já sabia tudo isto… e lá foi retransmitindo a sua ladainha de conhecimentos ao seu jovem amigo e parceiro de conversas da Internet.
Claro que o tema dos periquitos depressa se esgotou e logo passaram para divagações mais interessantes… e foi então que descobriram possuir muitos … mas mesmo muitos gostos em comum.
Ela era gémeos de signo, criativa, eloquente nas palavras, um humor que desarmaria a mais sisuda das criaturas. Ele, sagitário, fogoso e irreverente, rebelde, idealista. Ela perseguia uma alma gémea que nunca encontrara. Ele acreditava numa alma gémea que ainda não procurara, na esperança de tropeçar nela, num acaso do dia-a-dia.
Nunca trocaram fotografias. Ela não queria deixar-se influenciar pela beleza dele, dizia.
Ele dedicava-lhe poemas de amor.
Primeiro... uns breves minutos defronte do computador... depois aquela angústia da distância, a solidão da espera. Ambos em Lisboa, ambos anónimos no meio da multidão... quem sabe, talvez até já se tivessem cruzado na rua, um dia qualquer...
 
Combinaram encontrar-se. Na esplanada da avenida. Num domingo de manhã.
Ele iria de verde, ela de branco. Ambos levariam debaixo do braço uma agenda vermelha, tomariam um café, ficariam a conhecer-se, cara-a-cara... e logo se veria...
 
Os dias passaram, ao ritmo costumeiro, excepto para os amantes adiados, a quem o tempo nunca chega. Mas finalmente...
 
Galgou os ultimos degraus da escadaria do metro, desembocando directamente na avenida, a poucos passos da esplanada. Apertou com força a agenda vermelha, debaixo do braço. E se ela não estivesse lá? E se tivesse mudado de ideias? E se?
Um turbilhão de ideias desconexas inundou-lhe o espirito.
Não.
Devia afastar os pensamentos... todos os pensamentos. Seria alta? Baixa? Loura, ruiva, morena? Bonita? Simpática? Sensual? Magra, roliça, gordinha?
Como deixar de pensar?
Acercou-se do local combinado, aquela hora, quase vazio.
Uma... duas... três mesas ocupadas – um casal de namorados, um grupo de turistas, com aspecto de alemães, uma senhora, já de certa idade. Onde estaria a Maria de Fátima?
- Ainda bem que cheguei mais cedo... – deu consigo a murmurar sózinho... assim perceberei logo ...
Sentou-se numa das mesas vazias, entre o casal de namorados e a senhora já de certa idade.
Colocou a agenda vermelha em cima da mesa. Quando Maria de Fátima se aproximasse... saberia logo a quem se deveria dirigir...
 
- José Maria?
Virou-se para o lado, à procura. Não dera pelo aproximar de ninguém, mas a voz soara estranhamente próxima.
- José Maria?
Os olhares encontraram-se.
- De..deve... ser... engano...
Ela sentou-se no lado oposto da mesa, o olhar brilhante e inquiridor.
- José Maria... és mesmo tu? Essa agenda vermelha...
Ele engoliu em seco, e de repente o mundo desabou-lhe sobre os ombros, soterrando-o sem apelo.
- S... So...sou... sou... sou. Sou mesmo eu... e a ... a senhora... é...
A senhora já de certa idade, que estivera sentada por um bom par de minutos na mesa ao lado, sorriu maravilhada.
- Sim... sou eu... Maria de Fátima...
 
Olharam-se demoradamente, analisando a estranha situação.
Ele nunca lhe dissera a idade... 27 anos... nascido a 30 de Novembro... ela também não .... 72 anos... nascida a 31 de Maio...
 
Foi ela que finalmente rasgou o silêncio.
 
Então, José Maria... diz-me lá... ainda acreditas na alma gémea?

 

publicado por entremares às 21:10
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Quarta-feira, 15 de Julho de 2009

A oitava capela

 

( Participação na TERTÚLIA VIRTUAL de 15 de Julho - a última... )

 

 

Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, morro do Maranhão, Congonha, Minas Gerais... Brasil. Sábado pela manhã.
 
- E agora, como podem observar... estamos entrando no adro. À nossa volta, essas doze estátuas representam os doze profetas...
O guia, um moço ainda novo, olhar vivo e gestos incansáveis, ia acompanhando toda a explicação com pequenas observações, para delicia do grupo de turistas, todos portugueses, de visita ao Santuário.
- O santuário do Bom Jesus é património mundial desde 1985... e foi construido nos séculos XVIII e XIX por vários mestres, incluindo o famoso “ Aleijadinho”, que era o nome por que era conhecido o mestre António Francisco Lisboa...
Os turistas acompanharam-no ao longo da entrada para a capela, fotografando os frescos nas paredes, o estilo rocócó, as influências italianas.
- Magnífico, magnífico... repetiam, maravilhados...
- A primeira igreja foi construida em 1773... – continuou o guia, enquanto com um gesto autoritário ia chamando os turistas mais retardatários – e, como podem ver... a decoração da capela-mor é esplêndida...
Os turistas concordaram.
Mais flashes, muitas fotografias.
Um outro grupo de turistas, provavelmente japoneses, cruzou-se com eles, em sentido inverso. Os guias cumprimentaram-se efusivamente, e cada grupo lá continuou o seu caminho.
- E aqui temos... uma das partes mais interessantes do santuário... a zona das oito capelas...
As capelas, de planta quadrada, envolviam a capela-mor, cada uma delas com pinturas representando um dos passos da paixão de Cristo.
Todas... menos uma.
O grupo lá foi percorrendo a série de pequenas capelas, percorrendo os sete passos da paixão... até se deter defronte da oitava capela, de paredes vazias... sem qualquer fresco.
- E esta aqui? – quis saber um dos turistas, uma portuguesa já de certa idade, das poucas que aparentemente não fotografara ainda nada do santuário – porque está esta vazia? Removeram a pintura?
O guia deixou-se rir, bem disposto.
- Ah, essa... essa é outra história... essa tem uma lenda por detrás ...
Meia dúzia de cabeças voltaram-se para o guia, que propositadamente colocou a sua melhor entoação de mistério.
- Essa capela... foi a última a ser construida, sabe? ... por mestre Ataíde... e foi nessa capela que ele morreu...
- Houve algum acidente, quer dizer?
- Não... acidente nenhum. Mestre Ataíde foi incumbido de pintar as sete primeiras capelas, com as cenas da paixão do Cristo... e depois de as ter acabado, perguntou ao governador o que deveria pintar na última capela... e sabem o que o governador respondeu?
Abanaram a cabeça. Ninguém saberia, claro.
- Pois... o governador disse para ele: Mestre Ataíde... estou sem ideias. Portanto, decida você. O tema é livre, pode pintar o que quiser...
- E ele não pintou? – interrogou de novo a turista portuguesa.
- Pois... foi esse o problema... ele encerrou-se aqui dentro da capela... procurando inspiração, por não saber o que haveria de pintar...
- Mas não pintou nada, mesmo nada?
- Não... nada... e foi ficando, foi ficando... sempre à espera da inspiração que não veio... até que morreu... veja, é aquela laje ali, bem ao fundo, onde estão seus restos...
O grupo recuou uns passos, evitando pisar inadvertidamente a grande laje de mármore.
 
A turista portuguesa finalmente puxou da máquina fotográfica e apontando para a laje... disparou a sua primeira fotografia...

 

 

publicado por entremares às 20:07
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Terça-feira, 14 de Julho de 2009

Bem-me-quer, mal-me-quer...

 

Bem-me-quer… mal-me-quer…bem-me-quer… oh, não… outra vez? … mal-me-quer.
 
Outra vez?
Mal-me-quer?
Seria possível?
 
Contemplou desgostoso o caule sem pétalas, ainda entre os dedos. Como era possível? Como era possível que, qualquer que fosse a pergunta, qualquer que fosse a flor, o resultado fosse sempre o mesmo? Mal-me-quer…
Aos poucos e poucos, uma tristeza inundou-lhe os gestos. Sentou-se, cabisbaixo, encostado à parede esboroada do velho casarão. À sua frente, a perder de vista, um jardim mal cuidado era abrigo para um manto de malmequeres amarelos e brancos, entremeados de algumas papoilas.
Há muito que a avó Fernanda deixara de podar as roseiras, de cortar as ervas altas e até de ligar o repuxo da fonte. O jardim adormecera com o passar dos anos, indiferente aos passos do pequeno Júlio, de cada vez que este vinha visitar a avó – por hábito, aos fins-de-semana.
Naquela manhã de domingo, contudo… a avó Fernanda não estava sentada na sala, a tricotar, ou mesmo na cozinha, confeccionando bolos e biscoitos para os netos. Do alpendre, observara em silêncio a desconsolada expressão do neto, enquanto as pétalas do malmequer caíam … e o final se repetia.
Viu-o sentar-se, colocar a cabeça entre as mãos e por ali ficar, encostado à parede, absorto nos seus pensamentos.
 
Deixou passar alguns minutos e finalmente, acercou-se dele.
- Então, Júlio… já aqui estás… não me apercebi que já tinhas chegado, nem ouvi o portão…
Ele levantou a cabeça, tentando recompor-se.
- Avó… eu… isto é… não… eu… cheguei agora mesmo…
- Que bom, que bom… então chegaste mesmo a tempo… logo hoje que eu havia decidido começar a limpar aqui as ervas do jardim…
- Se quiser ajuda…
Ela exibiu, de olhos brilhantes, duas tesouras de podar e um ancinho.
- Se quero ajuda? Então não haveria ajuda? Eu até já trazia aqui duas tesouras na mão…
 
Atacaram as ervas no extremo sul, bem junto do portão.
Júlio, brandindo a tesoura de podar, ia atacar um molho de malmequeres quando a avó interveio de pronto:
- Os malmequeres… espera, espera…
Ele deteve-se.
- Não quer que arranque os malmequeres, avó?
Ela mirou-o de alto a abaixo, com um sorriso enigmático.
- Quero… mas primeiro vou mostrar-te uma das minhas habilidades… uma coisa que eu nunca te disse que sabia fazer…
- Uma habilidade?
- Exactamente… caso não saibas… a tua avó consegue sempre tirar a última pétala com um bem-me-quer… nunca tirei um mal-me-quer em toda a minha vida…
O pequeno Júlio arregalou os olhos, incrédulo.
- Como é isso possível? Ninguém consegue fazer isso…
- Ninguém?... essa agora… pois olha, eu consigo…
 
E, passando à prática, pegou num malmequer, fechou os olhos e lá foi retirando as pétalas, uma a uma, recitando a ladainha costumeira:
- Mal-me-quer…bem-me-quer…mal-me-quer…
 
E quando pegou na última pétala…
- … e bem-me-quer… pronto. Eu não te disse?
 
O neto olhava para ela, depois para a flor, e novamente para ela.
- Consegue fazer isso outra vez, avó ? Outra vez bem-me-quer…
- Se consigo? Claro que consigo… e tu também consegues… aposto contigo que o próximo malmequeres que apanhares vai ser… bem-me-quer. Aceitas a aposta?
- Mas avó, eu nunca…
- Nem mas, nem meio mas… não aceito desculpas… vá, escolhe um malmequer…
O pequeno Júlio lá pegou um malmequer e sem convicção, foi retirando as pétalas.
- Bem-me-quer…mal-me-quer…
 
Aproximava-se do final. Seria possível? Mais duas pétalas… seria verdade?... mais uma … mais uma… e… bem-me-quer.
- Bem-me-quer, avó… bem-me-quer… avó, viu? Viu? Saiu bem-me-quer…
A avó deliciava-se com os saltos entusiásticos do neto.
- Claro que estou a ver… e agora, aposto contigo que vais tirar novamente… um bem-me-quer… aceitas o desafio?
- Oh, avó… duas vezes seguidas… não sou capaz…
- Claro que és capaz… porque motivo não serias capaz?
- Porque eu nunca…
- Shiu… desculpas outra vez? Vá, escolhe lá outro malmequer…
 
E novamente… a última pétala foi … bem-me-quer. O pequeno Júlio não cabia em si de contente. Deu saltos, chorou de alegria, abraçou-se à avó, gritou…
Mas a avó ainda não terminara aquilo que se propusera a fazer.
 
- Vá… ainda quero fazer mais uma aposta…
- Oh avó… mais não … eu não sou capaz…
- Júlio… meu pequeno Júlio… eu agora aposto que tu vais tirar um… mal-me-quer…
O neto olhou para ela, estupefacto.
- Um mal-me-quer? E porque quer que eu tire um mal-me-quer? Julgava que só era bom… se saísse sempre bem-me-quer…
A avó passou-lhe a mão pelos cabelos, ternurenta.
 
- Oh, meu netinho… Então achas que eu só ficaria contente se tu só soubesses tirar bem-me-quer? Esses são os mais fáceis… eu não sei é se tu consegues tirar mal-me-quer… e é isso que eu quero ver…
- Avó…
- Outra vez? Desculpas? Nem pensar… faz de conta que estivemos a treinar… já conseguiste dois bem-me-quer… agora vamos ao difícil, aos mal-me-quer… vá… escolhe uma flor…
 

 

publicado por entremares às 20:01
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Segunda-feira, 13 de Julho de 2009

A improvável certeza do futuro...

 

 

- Luís… tem que estar com mais atenção… assim vai perder o jogo…
 
O pequeno Luís ergueu a mão, como se fosse protestar. Mas de que adiantava ? A mãe era uma jogadora terrível, impiedosa mesmo. Utilizava sempre aquelas tácticas com nomes estranhos – a abertura francesa, a defesa russa – e fosse lá como fosse, conseguia sempre vencê-lo, com a maior das facilidades, em poucas jogadas…
- Mas a mãe ganha sempre – protestou ele – eu ainda nunca lhe consegui ganhar…
- Não conseguiu… porque não está concentrado. Nota-se perfeitamente que está com o espírito algures… muito longe daqui…
- Mas eu não gosto de xadrez…
- Claro que gosta – e a mãe dedicou-lhe um sorriso meigo – só talvez ainda não tenha descoberto que gosta…
- Não gosto, não… a sério que não gosto… prefiro ir visitar o mestre Bernardo, para ouvir as histórias que ele trouxe do Oriente…
A mãe continuou a arrumar as peças do jogo.
- O mestre Bernardo influencia-o demasiado, meu menino… e já devia saber que não deve acreditar em tudo o que ele diz… o mestre Bernardo tem alma de poeta, e já sabe como são os poetas…
- Mas, minha mãe… já imaginou como será … aquele mundo estranho, que o mestre Bernardo já viu? Ele contou-lhe aquela aventura em Goa, quando o capitão…
- Não, não e não – a mãe decidira colocar um ponto final no assunto. – O Luís já vai sendo crescido, dentro em breve irá começar as lições de armas e eu não quero que desperdice o seu tempo a ouvir as divagações do velho Bernardo…
- Mas, minha mãe…
- Luís !
- Sim, mãe…
- Luís Vaz de Camões, não insista comigo. A poesia nunca fez ninguém rico ou famoso. Dê ouvidos à sua mãe, que muito o estima.
Fez uma leve pausa.
- E agora… é a sua vez. Vá, vamos jogar mais uma partida. Precisamos de melhorar essa sua concentração…

 

publicado por entremares às 21:16
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Domingo, 12 de Julho de 2009

O tema mais dificil...

 

- Mãe... prometes não ficar zangada?
A mãe olhou para ele, quase encolhido à beira da porta. Não vinha dali boa coisa, pensou.
- Zangada? Bem... depende, não é? Deveria ficar zangada?
O filho acenou afirmativamente com a cabeça.
- ... Recebemos hoje os resultados daquela prova... lembras-te ? ... Aquela da composição...
- A composição? Claro que me lembro... foi das poucas ocasiões em que eu te vi a estudar...
- Pois... mas olha... a turma toda, não fui só eu... os resultados, sabes...
- Desembucha, filho, que me estás a deixar nervosa. Mas afinal o que aconteceu?
- Eu tive... zero.
A mãe abriu a boca de espanto. Seria possível conseguir “zero” numa composição em Português ? Pelo menos a caligrafia bonita do filho deveria merecer alguns pontos de bónus...
- Zero? – repetiu ela – Como assim, zero? Como é possível apanhar zero a redigir uma composição ? Tiveste assim tantos erros?
O filho abanou a cabeça, derrotado.
- Eu... eu... não conseguia pensar em nada...
- Mas filho... tu estudaste tanto... todos aqueles autores que a professora disse que eram importantes... eu vi-te sempre agarrado aos livros... o que é que correu mal?
- ... Foi o tema, mãe, foi o tema... não saiu nada daquilo que a gente estava à espera...
- O tema? Então qual foi o tema que saiu? Se foi alguma coisa que vocês ainda não falaram, eu vou lá à escola e faço...
- O tema, mãe... era Tema Livre.
- Tema Livre? Então vocês podiam escrever sobre o que quisessem?
O filho concordou, sem palavras.
- E tu... tu não escreveste nada?
- Não... nem uma palavra... só de pensar que não era nada que eu tivesse estudado... fiquei... petrificado.
E correndo para a mãe, agarrou-se-lhe à cintura, a cara escondida no avental, uma lágrima rebelde a assomar ao canto dos olhos...

 

publicado por entremares às 22:21
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Sábado, 11 de Julho de 2009

É proibido adivinhar o futuro...

 

- É meia noite… e está tudo bem, com a graça do Senhor…
 
A noite estava fria. Uma neblina franzina, empurrada do rio, galgara o porto e espalhara-se pelas ruas desfocando os contornos e criando auréolas esbranquiçadas em torno dos candeeiros. As sombras, húmidas, escorregavam pelas paredes de pedra, abafando os passos nas calçadas de pedra.
A cidade dormia.
Não fora a presença do guarda nocturno, de lanterna em punho… e dir-se-ia que o silêncio era total; até os estivadores das docas, habituais fregueses tardios dos bares e tabernas da zona ribeirinha, haviam partido para parte incerta… deixando as ruas desertas.
O guarda Marcelino, primeiro cabo da guarda, nunca se conseguira habituar à cidade.
Lisboa, por muito que lhe dissessem o contrário, era suja, tresandava a peixe e albergava os piores facínoras do reino – ladrões, agiotas, mercenários das colónias, assassinos.
Mas em tempos de crise…
Enquanto caminhava ao longo da praça, veio-lhe à memória a imagem da sua aldeia natal, perdida entre os pinhais e as dunas, lá bem para o norte, junto da foz do Mondego.
- Ah, o campo, nada como o campo… - deu consigo a murmurar.
Mas o campo e a província ficaram longe, tal como a família.
- Se tudo correr bem… são só três anos – prometera ele – faço uma comissão e depois venho-me embora…
A mulher esperaria por ele. A mulher e as crianças, as quatro pequeninas e a que já vinha a caminho… se Deus quisesse, havia de ser um rapaz… depois de quatro raparigas, tinha que ser um rapaz…
E os três anos haviam passado.
 
Aquela ronda... seria a penúltima ronda. A sua comissão terminaria no dia dois de dezembro, e se os santos o permitissem, ainda chegaria a casa antes do natal.
Contornou o pelourinho e dirigiu-se à mouraria.
Algumas vozes e o passar de uma carroça trouxeram-no de novo à realidade.
 
- É uma da manhã... e está tudo bem, com a graça do Senhor...
 
Um pouco à frente, alguém despejava um balde de água para a rua; desviou-se a tempo, pragejando.
- Ó da casa... arre que vem gente a passar....
Ninguém lhe ligou.
Continuou, ladeira acima, os lampiões da fachada do castelo a assomar por entre as sombras da noite. Ajeitou melhor o agasalho.
O frio... aquele frio húmido que ia direito aos ossos, como detestava aquele frio. Mas o inverno ia ser chuvoso, diziam os entendidos.
O ano da graça de 1755 não fora de feição para a terra. O verão viera tardio, as searas mal espigaram, o trigo escasseava nos mercados. Os varões sadios e escorreitos alistavam-se no exército, que el-rei pagava mal mas alimentava as bocas e provia tecto a toda a gente.
Um leve tremor agitou-lhe os passos, desequilibrando-o.
- Ora essa... – estranhou – quem me visse diria que nem me tenho nas pernas...
Não teve tempo para novo pensamento. Um rumor grave e surdo foi aumentando de volume, como se as entranhas da terra gemessem uma dor infernal. Voltou a sentir o chão o tremer com violência, ao mesmo tempo que algumas pedras se desprendiam das paredes e tombavam sobre a calçada.
O que era aquilo, por Deus?
Aqui e ali, gritos irromperam. Num instante, a rua encheu-se de gente, candeias acesas, as mães fugindo de cas com os filhos nos braços.
Após uns segundos de intervalo, a terra tremeu novamente.
Caiu por terra.
- Por todos os santos... fugi, fugi todos... – passou alguém a correr – fugi que é um terramoto...
O guarda Marcelino ainda tentou levantar-se. Mas a torre da igreja, com um rugudo de dor, precipitava-se já sobre ele, desfazendo tudo à sua passagem.
Corria o dia um de dezembro do ano da graça de 1755, em Lisboa.
Penúltima ronda do guarda Marcelino, primeiro cabo.
 
 

 

publicado por entremares às 00:55
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Quinta-feira, 9 de Julho de 2009

O vencedor improvável

 

 

- E então, o que me dizem? Vamos votar?
Todos estavam de acordo. Porque não? Alguém teria que ser o escolhido... e apesar de ninguém se atrever a dar o primeiro passo, todos, sem excepção, alimentavam o secreto sonho de...
 
Dez, doze, quinze papelinhos... uma caixa vazia para urna improvisada.
Trocaram-se olhares. O João? A Telma? Talvez a Vanessa?
O silêncio amarrotou-se à medida que os papelinhos iam sendo escritos, meticulosamente dobrados e atirados para dentro da caixa.
 
- Estão todos? Não falta ninguém?
Estavam todos.
Vinte e três papelinhos, correspondentes a outros tantos pares de olhares ansiosos. O senhor Alfredo, o representante oficial da comitiva, não teve outro remédio senão avançar e assumir as funções de escrutinador.
- Pronto, pronto... eu faço. Mas vamos lá a despachar isto... que até já me conseguiram deixar nervoso.
 
- Telma... um voto.
Alguém começou a apontar os resultados, rabiscando num papel e repetindo em voz alta.
- Telma... já está. Um voto.
- Vanessa... um voto. – continuou o escrutinador.
- Vanessa... aqui está... um voto – repetiu a sombra.
- Álvaro... um voto.
Alguém bateu palmas, lá bem do fundo da sala.
- Assim é que é Álvaro... mostra-lhes como é...
O senhor Alfredo continuou com a sua ladainha, imperturbável.
- Álvaro... um voto.
E o secretário repetiu: Álvaro... passa a dois votos.
 
O escrutinio lá continuou, aqui e ali interrompido por palamas, assobios e piropos, para logo se recomeçar a contagem.
- Álvaro... um voto.
E o secretario repetia, em voz solene: Álvaro... um voto... e passa para quinze votos.
 
Finalmente, deram por terminadas as contas. Não havia necessidade de segunda volta, de desempate, tão pouco houve protestos ou contestação; simplesmente um enorme coro de assobios e uma prolongada salva de palmas, para aclamar o vencedor.
 
- Ganhou o Álvaro – anunciou o secretário – com dezoito votos... depois a Vanessa, com três... a Telma com um... e temos um em branco.
E, virando-se para o contemplado:
- Álvaro... vais ser tu...
O dito cujo ainda tentou protestar, mas as palavras morreram-lhe nos lábios. Uma multidão de beijos e abraços cercou-o por todos os lados e, por um breve instante... Álvaro sentiu-se a pessoa mais feliz à face da terra.
 
- Está na hora... vamos a isso...
Avançaram pelo túnel, rumo à claridade e ao som ensurdecedor que dali provinha.
 
O estádio estava cheio, repleto de cor, bandeiras a esvoaçar, balões coloridos. Nas bancadas, milhares de braços acenavam frenéticamente em todas as direcções, acompanhados pelos flashes das máquinas fotográficas, procurando eternizar o momento.
Na pista de tartan, ladeada de bandeiretas, a delegação anterior já se afastava, acenando para o público.
Chegara a hora.
Ergueu a bandeira o mais alto possível, olhou uma última vez para os companheiros e fez-se à pista, os olhos sem nada mais ver que um enorme vazio à sua frente, pejados de rostos que não conhecia, a acenar à sua passagem.
Ao fundo do estádio, a torre majestosa com a pira ardente dominava toda a paisagem, ladeada pela bandeira gigantesca com os cinco anéis coloridos e entrelaçados, representando cada um dos cinco continentes.
Era um sonho. Estava a sonhar. Era demasiado saboroso para poder ser verdade.
O ruído de fundo sobrepunha-se a tudo. Teve que gritar para se fazer ouvir.
- Joana... empurras-me devagar... está bem? Quero aproveitar ao máximo o momento...
Ela riu-se.
Segurou firmemente os apoios da cadeira de rodas e começou a empurrá-lo em direcção à faixa central da pista.
Álvaro, segurando a bandeira com as duas mãos, estampava no rosto o sorriso mais infantil. Era mesmo verdade. Não precisava de se beliscar, aquilo estava mesmo a acontecer, ali e agora.
Alcançaram a faixa central. Pela frente, esperava-os uma ovação de quatrocentos metros e a recordação futura, as memórias únicas de um momento... para nunca mais esquecer.
Apesar da cadeira de rodas, apesar do sofrimento, apesar da luta, apesar de tudo... conseguira... e estava ali.
A companheira da comitiva adivinhou-lhe o olhar e, inclinando-se para a frente, sussurrou-lhe ao ouvido:
 
- Eu nunca tive dúvidas que conseguirias, Álvaro... bemvindo aos Jogos...
 

 

publicado por entremares às 01:57
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Terça-feira, 7 de Julho de 2009

A verdadeira história de Peter Pan

 

 

Pequenina, de asas graciosas e quase transparentes como todas as fadas, a amiguinha de Sininho era muito fácil de reconhecer, esvoaçando sobre os campos de flores.
Seria o seu vestido, amarelo como os girassóis?
Seriam os sapatinhos de verniz, a imitar as conchas do mar?
Ou o seu tom de pele mais escuro, tão diferente de todas as outras fadas?
 
Chamava-se Nyota… e nascera muito longe dali, num continente quente e povoado de grandes florestas, lagos e desertos, e animais tão estranhos que ela não voltara a encontrar iguais, em mais parte alguma.
Nem na terra do Nunca.
E aquele dia, na terra do Nunca, ia ser um dia... muito especial; Peter Pan, o eterno menino vestido de verde, como príncipe dos bosques e senhor das terras do arco-iris... ia anunciar o seu noivado.
Ninguém ignorava que Sininho sempre fora a fada de Peter Pan – a história descrevera-a assim, eternamente apaixonada pelo irrequieto menino que se recusava a crescer. Mas o que não estava escrito na história.. e que quase ninguém sabia... era o amor escondido que Peter Pan e Nyota nutriam um pelo outro, desde que se haviam visto pela primeira vez, numa tarde de verão.
Nyota era divertida, uma óptima contadora de histórias... e sempre que podiam, desapareciam os dois rumo ao alto dos bosques. E ali, no silêncio dos pássaros e no murmúrio dos ventos... Nyota contava-lhe histórias de uma terra distante, em que os meninos rodeavam dançavam à volta de fogueiras, caçavam animais de cores bizarras e saltavam de árvore em árvore, pendurados dos ramos.
Peter Pan bebia-lhe o olhar, cheio de imagens, imaginando-se a ele próprio naquela terra estranha e longínqua, onde todos os meninos tinham uma cor de pele tão diferente da sua... e que Nyota descrevia como sendo tão bela como a terra do Nunca.
 
- Mas não há nenhuma terra mais bela que a terra do Nunca... – protestava Peter Pan, sempre que ela lhe tocava no assunto. – não pode haver...
- Mas é claro que há... e prometo-te que um dia... ainda te levarei lá...
 
E assim ela ali permanecia, inebriada por um simples olhar, enquanto ele adormecia, à sombra dos plátanos, sonhando com oásis de palmeiras no meio de desertos, tempestades de areia e longas pradarias de ervas altas e manadas de animais estranhos, a perder de vista...
 
Quando Peter Pan entrou na sala, as fadas interromperam a ladainha de sussuros. No silêncio frio do mármore, o único ruido provinha das botas de Peter, dirigindo-se ligeiro até a um dos extremos do grande salão. Sem cerimónia, saltou para cima de uma das mesas, distribuindo aquele seu olhar atrevido em redor.
Discretamente, Sininho aproximou-se também do local – queria estar bem ao seu lado, mal ele pronunciasse o seu nome.
 
- Meus amigos... como todos sabeis... está escrito que Peter Pan irá escolher uma fada da terra do Nunca... para juntos ajudarmos a cuidar de todos os habitantes ...
 
Fez uma longa pausa, enquanto dirigia o olhar para Sininho, ali bem perto de si.
 
- ... E todos vós já me conheceis há tanto tempo... e conheceis tão bem como eu a história da terra do Nunca, não é verdade? – e esticou o braço em direcção a Sininho - ... queres vir aqui fazer-me companhia... Sininho?
 
Palmas, muitas palmas, ainda mais suspiros.
No outro extremo do salão, um lamento passou quase despercebido.
Nyota, as mãos a tapar os olhos, saiu de mansinho para o jardim.
Peter Pan, do alto da mesa que lhe servira de tribuna, conseguia vê-la.
 
- Sininho... dás-me só um segundo, por favor? tenho só que ir ali falar com uma pessoa... é só um segundo...
A fada Sininho fez-lhe uma vénia irónica, com um sorriso de felicidade.
- Claro que sim, meu príncipe... claro que sim... mas não te demores...
 
Peter Pan apressou o passo, distribuindo sorrisos, beijos e abraços. Precisava de alcançar a porta do jardim.
 
- Nyota! Nyota!
Correu para ela.
- Nyota... espera, por favor...
Ela abriu a porta exterior do jardim. Quando se voltou, uma lágrima brilhante deslizava-lhe pelo rosto.
- O que queres, Peter?
- Nyota... meu amor... por favor, tens que compreender... estava escrito...
- Eu não sou o teu amor, Peter...
- Mas, Nyota... estava escrito... eu tenho que escolher a Sininho...
- Julguei que me amavas, Peter...
- E amo, Nyota, mais que tudo... mas que mais podia eu fazer? Está escrito ... na minha história... que eu tenho que escolher a Sininho... não posso evitá-lo...
Nyota olhou-o nos olhos e lá no fundo sentiu-se de novo a criança desprotegida, ansiando por um abraço, por uma palavra meiga.
 
- Eu também te adoro, Peter Pan... e isso não está escrito em nenhuma história, sabes? E se tu gostasses realmente de mim...
- Nyota, mas eu não posso...
- Peter... sabes porque não podes ?
- ...
- Não podes porque... até aqui não consegues deixar de ser ... uma criança...
- Nyota...
- Não, Peter... eu sei de tudo o que me vais dizer, mas... hoje e aqui... eu precisava que tu crescesses... nem que fosse só um pouquinho... que tivesses desafiado a história que escreveram para ti ... e me escolhesses...
 
Abriu o portão e seguiu em frente, o vestido amarelo como os girassóis a brilhar na noite escura. Desejava ardentemente que ele a chamasse.
Bastaria que a chamasse uma única vez... e ela voltaria a correr para os seus braços.
 
Mas sabia perfeitamente que tal nunca iria acontecer...

 

publicado por entremares às 08:18
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Segunda-feira, 6 de Julho de 2009

A divina comédia

 

Julia – Não é justo...
Deus – Não és tu que decides isso, sabias?
Julia – Mesmo assim... os computadores são máquinas, e as máquinas não podem avariar precisamente nas piores alturas.
Deus – E porque não ? Se avariassem e tu nem te apercebesses... onde estaria a graça?
Julia – Graça? Graça... eu ficar sem todo o meu trabalho... uma tarde inteira de trabalho... acha graça a isso?
Deus – Claro que é irónico... apesar de Eu não ter tido qualquer responsabilidade nisso, caso não saibas...
Julia – Vai dar ao mesmo... a sua função devia ser a de evitar que estas coisas acontecessem...
Deus – Claro... e daqui a pouco até me estarias a pedir que os teus textos aparecessem escritos sózinhos no computador, por intervenção divina... isto é, por minha intervenção, não é?
Julia – Ajudaria bastante...
Deus – Pois desengana-te... não é assim que as coisas funcionam, minha menina...
Julia – Isso já eu percebi. Só não percebi ainda é como elas funcionam... porque Deus também deveria proteger os pobres utilizadores destas máquinas infernais...
Deus – Ah... agora é que falaste bem...
Julia – Falei? Por ter dito que os computadores eram máquinas infernais? Quer dizer que a seguir vai atirar as culpas para o Diabo? Ele é que inventou os computadores, querem ver...
Deus - ... Hum... não, por acaso não foi ele. Mas vou contar-te uma história, e pode ser que assim percebas melhor...
Julia – Pois... parábolas, parábolas... porque não diz logo as coisas de uma vez?
Deus – Bem... então foi assim... Deus e o ... isto é, Eu e o Diabo também fizemos aqui há uns tempos atrás... um pequeno curso de informática, sabias ? Coisa pequena, claro, um par de horas... mas pronto, o mais importante é o que aconteceu depois...
Julia – Depois? Depois de quê?
Deus – Depois do curso, claro... tivemos que fazer uma prova, como deves calcular... e não é que, durante a prova – imagina lá tu – a electricidade acabou... e os computadores se desligaram?
Julia – Oh, que horror...
Deus – É isso mesmo... mas entretanto, quando a electricidade voltou, já não houve tempo para repetir o teste e então... só eu passei.
Julia - ...
Deus – Não dizes nada?
Julia - ... ainda não cheguei lá... quer dizer que o Deus passou no exame e o Diabo chumbou, é isso?
Deus – Ora nem mais... fantástico, não é?
Julia - ... estou quase, quase lá... mas ainda não percebi a ideia...porque é que, se os dois computadores se desligaram por falta de electricidade... só Deus é que passou no exame... e o Diabo chumbou?
Deus – Ora ... é muito simples... é que eu “salvo”... isto é, Deus salva “ save as”, “ guardar como” e essas coisas todas...
Julia – Ah...
 
E Deus ria, ria, ria sem conseguir parar.
Julia, com uma tarde de trabalho perdida no computador, nem por isso...
 

 

publicado por entremares às 19:39
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Domingo, 5 de Julho de 2009

Pó-de-Arroz...

 

Aproximou-se um pouco mais do espelho. O que era aquilo?
UMA RUGA?
Como era possível?
 
Só havia duas coisa nesta vida que ela, pura e simplesmente, não suportava; uma era o aparecimento daquelas coisas inestéticas, chamadas de rugas. A outra era o gesto irritante dos seus netinhos a chamarem-na de avó - a ela, que nunca se sentira como velha, agora a ser chamada de avó... era demais, sinceramente, era demais.
Dona Ascensão de Figueiredo Morgado tinha-se em muito boa conta, é certo. O Morgado fora-o buscar ao marido, um velho militar de carreira que apesar de falido, lhe deixara uma filha, duas casas e uma herdade, lá nos confins do alentejo. Ela acrescentara o "de" ao nome, sentia que o som era mais fidalgal. Um "de" no nome não era para todos e, como tal, a primeira coisa que fez na altura própria, foi registar a filha na conservatória com o proverbial nome de Patricia de Vasconcelos Figueiredo Morgado. Quando o marido lhe perguntou, na altura muito surpreendido, se o "Vasconcelos" vinha do lado do pai ou da mãe, ela despachara-o prontamente com um " Nem dum nem doutro...vem da societê..."
O problema foi quando nasceram os netos. Um par de gémeos, lindos de morrer, olhos verdes e cabelo castanho dourado. Ainda tentou imaginá-los parecidos com a filha... mas não havia como enganar, eram a réplica exacta do pai, um bancário alto e franzino por quem a filha se perdera de amores. Ainda por cima, não apreciara nada a intromissão dela, com umas inocentes sugestões para os nomes dos netos.
Enfim... era pena, perder-se assim um apelido tão bonito... Figueiredo Morgado... que tanto trabalho lhe dera a arranjar...
 
- Mãe, despache-se... eles já estão todos dentro do carro, só falta a mãe...
Ainda por cima.
Como se não faltasse mais nada... sempre com pressa, sempre com pressa. Aquilo eram as influências do genro, habituado aos horários do banco, campainha para aqui, toque para acolá...que coisa...
Ela... ela que lhes proporcionara o prazer da sua companhia... que até aceitara ir morar com eles - o genro escorregara um dia, convidando-a por cortesia no natal... é claro que ela não podia recusar, como é evidente... - e agora ali estava, a ser pressionada, sempre tudo às pressas para... para quê? Uma simples ida ao centro comercial, ou coisa que o valha....
 
Rebuscou a mala de lantejoulas e retirou novamente a caixinha do pó-de-arroz.
Com imenso cuidado, lá foi aplicando mais uns pózinhos sobre a renitente ruga, até a conseguir dissimular um pouco mais.
Olhou-se de novo ao espelho.
Perfeita.
Claro que não podia rir em demasia, bem entendido. Aí notar-se-ia outra vez. Mas também... onde estavam os motivos para rir?
Aplicou o baton, daquela cor que a filha passava a vida a comentar que já não era para a sua idade. Era o que faltava. Já não ter idade para usar a sua cor de baton favorita...
 
- Já vou, já vou...
Abriu a porta do quarto. A filha mirou-a de alto a baixo, soltando uma risinho de aprovação.
- Estás muito in, mãezinha... quase que parecemos ter a mesma idade...
A mãe passou a mão pelos cabelos, acabando de se compôr.
- Não parecemos, não, minha querida... essa tua corzinha que puseste já não se usa... e devias colocar um pouco de baton nessa boquinha... já se começam a perceber aí umas ruguinhas...
 
A filha mordeu os lábios.
- Velha bruxa... eu até que aposto que fui trocada na maternidade...

 

publicado por entremares às 14:06
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Sexta-feira, 3 de Julho de 2009

Andrea

 

 

O Olhar. Aquele olhar.
Era impossível passar-lhe ao lado.
 
Há coisas que nos prendem a atenção – a fineza do porte, a elegância dos gestos, a subtileza dos movimentos... a expressividade do olhar. Andrea seria uma dessas raras pessoas cujo olhar perfuraria a rocha mais sólida, sobressaindo da multidão, onde quer que se encontrasse.
Os olhos eram negros, ébano brilhante, como um poço sem fundo. Olhos tristes.
Ou talvez não fossem os olhos tristes... mas tão sómente triste o olhar.
Os lábios carnudos, a pele mestiça e o cabelo curto a emoldurar-lhe o rosto tornavam-na fácil de reconhecer, no meio de todas as outras.
Que idade teria? Pouco mais que adolescente, certamente...
Os pais, emigrantes, procuraram para ela uma terra de oportunidades. Boa aluna, rebelde e inquieta como todas as da sua idade, um jeito muito peculiar de cantar e de dançar, como se a música lhe estivesse embutida no sangue, bebida no leite materno desde a primeira hora.
Os colegas descreviam-na como alegre, extrovertida, faladora, muito faladora. Amiga das suas amigas e pouco dada à bebida – um cigarrito talvez, de vez em quando.
 
Afastou-se um pouco mais.
De longe, a perspectiva era sempre diferente. O rosto adquiria uma personalidade diferente, uma noção de conjunto. Mas o olhar... o olhar sufocava tudo, remetendo todas as restantes fotografias, coladas na parede, para terceiríssimo plano.
O sargento voltou a contemplar todos os rostos, um por um. Todos tinham um nome, escrito à mão na parte inferior, em letra apressada; Raquel, Maria, Luisa, Joana, Fátima... Andrea.
Na parte superior do placard, fixo numa parede interior da pequena esquadra, um rótulo de cores esbatidas relembrava a todos os que por ali passavam:
 
PESSOAS DESAPARECIDAS.
 
O sargento lançou-lhes um último olhar, antes de se dirigir à sua secretaria.
- Andrea, Andrea... onde estás tu? 

 

 

 

 

publicado por entremares às 22:32
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