Sexta-feira, 27 de Março de 2009

F É R I A S ...

 

Pronto... é só por uma semana...  e também são só umas dezoito horas de viagem para lá... e outras dezoito horas de viagem para cá....

 

Eu depois conto-vos como foi...

publicado por entremares às 14:56
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Quinta-feira, 26 de Março de 2009

Sexo, muito sexo...

 

 

- Desculpa..., estás mesmo a falar a sério ?
- Olá se estou...
- Mas não podes... não podes estar a falar a sério, repara só no absurdo...
- Absurdo ? Essa agora... não é absurdo nenhum... é só uma questão de educação...
- Educação ? Isto não é nenhuma educação... é uma necessidade...
- Não insistas. Para mim, sexo... só depois de casados.
- Mas, Mimi, por favor...
- ... E nem vale a pena insistires. Sabes bem que já falámos deste assunto... umas mil vezes...
- Mas, Mimi, a situação era diferente...
- Diferente ? Para mim é igual. Ora vê lá aqui... ora vê só o meu dedo... estás a ver algum anel de casamento aqui ? Não estás, pois não ? E sabes porquê, sabes ?
- Sei, Mimi, eu sei.
- Pois é isso mesmo, porque ainda não somos casados. E pronto, não se fala mais no assunto.
- Mas, Mimi...
- Não. N – Ã – O.
 
- David ?
- Hum...
- Estás acordado ?
- Hum...
- ...
- Está quieta. Já te disse que quero dormir...
- Vá lá, só um bocadinho...
- Não consigo... e preciso de dormir...
- Não precisas de fazer nada... só de ficar aí quietinho...
- Não... já sabes que eu preciso de privacidade...
- ... Privacidade ? Mas estão todos a dormir...
- Mesmo assim...
- Vá lá... a gente nem precisa de fazer nenhum ruido...
- Não... só quando estivermos sózinhos...
- Sózinhos ? E até lá... o que faço eu ? Jogo às cartas sózinha, é isso ?
- Deixa-me dormir...
- ...
- Adoro-te...
- Idiota.
 
- Sinto-me frustada... não te acontece o mesmo ?
- A mim ? Oh, Eva... não me digas que é aquele assunto com o David... outra vez.
- Outra vez ? Não é outra vez... é sempre a mesma vez, que é como quem diz, nunca é...
- Não te aborreças...
- Aborrecer ? Eu não me aborreço, eu irrito-me. Às vezes, só me apetece algemá-lo e violá-lo, sem ele se poder defender...
- Oh, Eva... não te conhecia essa faceta tão... arisca...
- Já não é faceta, é assim uma coisa mais parecida com um daqueles pobres africanos famintos, a ver passear um franguinho assado à sua frente... e não lhe poder espetar o dente... é injusto, é o que é...
- Tens que ter paciência...
- Isso é fácil de falar, Mimi... porque, óbviamente... tu não estás no meu lugar...
- Pois não, lá isso é verdade...
- Então... tu e o teu Alberto... como é que fazem ?
- Nós ? Como assim ?
- Sim... vocês... sexo. Como é ? Nunca te vejo a queixar, sou sempre eu a desabafar as minhas mágoas...
- Ah... pois, bem vês... é que nós temos um entendimento...
- Ai têm ?
- É verdade... nós acordámos que sexo... só depois do casamento.
- Ahh...
- ... e portanto, respeitamos o acordo. Pronto, é só isso.
- Ahh... e consegues sorrir, depois de me estares a dizer essas coisas ?
- Oh, Eva... é só sexo.
- Só ? Mimi.... tu ouve bem o que eu te estou a dizer... te garanto que eu vou agarrar o meu franguinho assado e espetar o dente até ele ficar só pele e osso... nem que eu tenha que lhe colocar uma droga para dormir na sopa.
 
- Estás com cara de sono...
- Nem queiras saber...
- Deixa-me adivinhar... a Eva de novo ?
- É fácil, não é ? Também não existem muito mais hipóteses de escolha...
- Tens que dar um jeito nessa situação...
- Pois...
- A sério, David. Mais tarde ou mais cedo, vais ter que resolver isso...
- Alberto... já te expliquei um milhão de vezes... não consigo, simplesmente não consigo... sem um pouquinho de privacidade.
- David... mas aqui isso não existe...
- Por isso mesmo ... é que eu não consigo... e tu ? Como fazes ? Já conseguiste convencer a Mimi ?
- Isso queria eu... já perdi a conta às tentativas...
- Mas porque não quer ela ? Tem algum problema ?
- Problema ? Tem. Um problema idiota, é isso. Imagina tu que passa a vida a repetir-me que sexo... só depois de casar. Já imaginaste isto ?
- Casar ? Aqui ? Mas isso não é possível...
- Ahh... Pois... Eu sei disso, tu sabes disso... mas ela ainda não percebeu isso. Portanto, nada.
- Mas já tentaste abordar a questão assim.... de outra maneira, com mais diplomacia ?
- Diplomacia ?
- Sim, sabes como é... tentar uma abordagem diferente...
- ...
- Já ?
- ... David ?
- Sim, Alberto ?
- Qual é a parte que tu ainda não percebeste ? ... Aquela em que nós os quatro estamos sózinhos no espaço, dentro de uma nave minúscula com destino a Marte, onde vamos passar os próximos dezoito meses sem poder sair daqui – e muito menos casar – ou aquela parte em que dormimos todos no mesmo compartimento, por falta de espaço e onde, de cada vez que eu estico um pé tenho que descobrir se te estou a tocar a ti, à tua mulher, ou à minha própria mulher ? Qual é a parte que ainda não percebeste ?
- ...
- Pois... bem me parecia... estamos bem arranjados, isso é que é...

 

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publicado por entremares às 12:05
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Quarta-feira, 25 de Março de 2009

A teoria do Tudo

 

 

A teoria do Tudo devia ser uma coisa complicada...para todos os efeitos, Einstein e muitas outras estrelas do mundo da ciência haviam empenhado grande parte das suas vidas na procura dessa resposta... dessa tal resposta que, aparentemente, interessava a toda a gente.
Bem vistas as coisas... nem era só uma pergunta.
Claro! É sempre assim.
Então e como surgimos ? E como surgimos ? E o que estamos aqui a fazer ? E tudo isto que nos rodeia foi criado... ou criou-se a si próprio ? Etc, etc, etc...
Pegou no copo e bebericou mais um gole de Martini. Ajudava-o a pensar, vá lá saber-se porquê...
Bom... e então, o que fazer ?
A conferência seria no dia seguinte, logo pela manhã, no grande auditório da escola. E escusado será dizer que agora era demasiado tarde para voltar atrás... aliás, sabia perfeitamente que nunca estivera nas suas mãos o poder decidir... a esposa, a sua querida Marta, era uma personagem adorável, meiga e delicada... mas quando metia uma coisa na cabeça, nem Deus a conseguia fazer mudar de ideias.
Portanto, o simples facto da esposa ser uma ex-aluna daquela escola, amiga pessoal do director e – mais grave ainda – ter dito em público que “ Importar ? , Claro que o meu João não se importa...” já era mais que suficiente para o assunto estar arrumado.
Portanto, manhã seguinte, auditorio da escola, casa cheia aí com uns trezentos alunos de todas as idades... e o bom do João, Professor Doutor João Perestelo, com um diploma por Harvard e uma pós-graduação no M.I.T... lá teria que tentar encontrar as palavras mais simples para falar do universo... das estrelas, do Big Bang... e preparar-se para as perguntas terríveis que aquelas cabecinhas pensadoras se lembrariam de inventar... só para o atormentar.
Recapitulando... estava metido numa bela encrenca e tinha exactamente um par de horas para pensar num esquema de apresentação que fosse ao mesmo tempo interessante... e acessível, muito acessível.
Mas sinceramente... não lhe ocorria nenhuma brilhante ideia em como fazê-lo.
 
Palmas, muitas palmas.... – Obrigado, obrigado – e avançou resoluto até ao suporte de microfone, bem diante da mesa, engalanada com grandes ramos de flores.
Aproximava-se o momento decisivo e... iria improvisar.
- Deixa-te levar – sussurrara-lhe a esposa ao ouvido, antes de tomarem lugar, junto aos outros convidados, na mesa de honra. - ... e vais ver que corre tudo bem...
- Para ti é fácil ... se houver ovos e tomates a voar pelos ares... eu é que estou na primeira linha...
Ela riu-se e deu-lhe um piparote no nariz – Vá, vai lá...
Soprou para o microfone. Já uma vez lhe acontecera ter de repetir os primeiros minutos de um discurso muito bem preparado, mas que ninguém estava a ouvir, porque ele se esquecera de ligar o microfone. Mais valia não arriscar.
 
- Meus amigos...- e tentou abarcar com a vista toda a plateia – obrigado pelo convite... e obrigado pela coragem de ficarem aí sentados, a ouvir falar do universo, de galáxias e de equações matemáticas complicadíssimas. Não sei quanto vos estão a pagar para assistir... mas cuidado, que depois têm que declarar este dinheirinho nos impostos...
Risinhos, boas disposição... nada como quebrar o gelo.
O dr. João era um comunicador nato, apesar de não estar habituado a dialogar com plateias de idade tão ... juvenil.
- Agora a sério... – continuou ele – a intenção desta pequenina conversa... é muito simples... e espero muito que venham a colocar muitas questões, daquelas questões complicadas, porque isso só significaria que o nosso assunto de hoje... vos teria deixado a pensar... e alguém sabe qual é o nosso assunto de hoje ?
Ninguém quis arriscar.
- ... O universo... o universo é o nosso assunto de hoje, imaginem só. E eu, quando tinha a vossa idade, perguntava-me se...
 
Tranquilamente, foi falando do Big Bang, das estrelas, dos telescópios, de naves espaciais e da Guerra das estrelas, de Aliens e de Transformers... observando com atenção sempre que alguma comparação fazia sorrir os mais novos. E surpreendeu-se até quando alguém da plateia conseguiu citar dois ou três cientistas famosos, e quando um dos miudos da frente afirmou que o telescópio Hubble se chamava assim em honra de um astrónomo com esse nome...
- ... E portanto, como vêm... podíamos estar aqui a manhã inteira, e nunca chegaria o tempo para falar de todos os assuntos relativos a este nosso universo... mas agora, tenho que me calar, senão vocês não podem colocar as vossas perguntas...
 
Burburinho.
Um rapaz já com aspecto de finalista, da segunda fila, arriscou:
- E acredita mesmo que poderá existir vida lá fora ... mesmo depois de tanto tempo à procura... e de ainda não termos encontrado nada ?
- É uma pergunta complicada... e para te responder sem te maçar com números e mais numeros, só se fizer algumas comparações... não te importas ?
Claro que o rapaz não se importava.
- Então olha... quantas pessoas estarão aqui nesta sala ? Umas 300... 350, talvez ? Vá, fiquemo-nos pelas 300, só por ser um número redondo... agora tenta imaginar que cada uma destas pessoas tem um punhado de moedas, digamos umas 10 moedas, dentro dos bolsos... consegues imaginar ?
O rapaz acenou a cabeça, concordando.
- Então... – e o dr. João ia caminhando para fora do palco – agora vou fazer uma experiência contigo... vais fechar os olhos e eu vou dar uma moeda das minhas a uma das pessoas desta sala, percebes ? Mas tu não sabes qual... – e, enquanto isto, entregou uma moeda a uma rapariga de tranças, sentada mesmo ao centro da primeira fila – e agora... abre os olhos.
O rapaz obedeceu. A plateia aguardava, curiosa.
- Pronto... – continuou o cientista – agora vamos supôr que tens uns binóculos fantásticos, potentíssimos... escolhe uma pessoa qualquer desta sala, fazendo de conta que cada pessoa é um sol, ou um sistema solar como o nosso, aponta para ela os teus binóculos e vamos descobrir se a minha moeda, o meu pequeno planeta habitado... está nos bolsos dessa pessoa... e se tu a descobres...
- Mas são tantas pessoas – queixou-se o desgraçado, já arrependido da pergunta.
 
A experiência resultara. No meio de palmas, risadas e boa disposição, ainda conseguiu responder a mais três questões.
- Dr. João... Pestelo ... Prestelo...
Risada geral.
- Não se preocupe.... – tranquilizou o cientista – no princípio a minha mulher também se enganava...
Nova risada de boa disposição.
- Dr. João... diga-me só uma coisa... foi Deus que criou o Big Bang ?
 
Pronto. Agora é que já tinha o caldo entornado.
E ele, que com tanto jeitinho, evitara a palavra Deus durante toda a manhã... falando só de ciência, de tecnologia, de progressos científicos, de explicações lógicas... porque razão queria aquela moça agora meter Deus na conversa ?
- Deus ? ... O que quer a menina saber acerca de Deus, diga lá ?
Ela repetiu, um pouco constrangida.
- ... Foi... Foi Deus que criou esse Big Bang que explicou há pouco ? As galáxias ?
 
Súbitamente, fez-se silêncio.
- Bem... não sei muito bem como te responder... nós, os cientistas, trabalhamos com factos... fazemos previsões, baseados em teorias... e depois tentamos provar essas teorias... compreendes o que eu quero dizer ?
- Não pode dar um exemplo ?
- Um exemplo ? Bem... Imagina que eu quero provar que 2x5 = 10, mas não sei multiplicar... o que poderia eu fazer ? Pegava no número 5, somava-o com ele próprio, obtendo o resultado de 10. Tinha conseguido provar algo...
- E não pode fazer o mesmo com Deus ?
Nova risada geral.
- Pois... essa é a parte complicada, não é ? Seria o mesmo que eu dizer-te agora... olha, agora vai apagar-se a luz, só para te provar que Deus desligou o interruptor, ou então que amanhã...
 
A frase morreu-lhe nos lábios.
Com um leve estalido, a iluminação geral do anfiteatro apagou-se, surgindo de imediato a piscar as pequenas luzes de emergência branca, sobre as ombreiras das portas.
O burburinho fez-se de novo ouvir, enquanto os segundos começaram a passar.
Bastaram dez. Dez segundos e logo as luzes se acenderam de novo, ao mesmo tempo que um funcionário da manutenção assomava à porta do auditório, tremendamente embaraçado.
- Desculpem... ninguém nos tinha avisado que...
Nova risada geral.
O dr. João aproveitou a oportunidade para se chegar à frente e tentar pôr fim à sua palestra.
- ... pronto, meus amigos... e para ti em especial – e ia apontando para a moça que lançara a pergunta - ... já perceberam porque motivo é sempre tão complicado falar do universo? É que por vezes... quando pensamos já ter a fórmula completa para explicar tudo... aparece sempre mais uma variável com que não contamos...
- dr João... – interrompeu a moça, com um risinho na ponta dos lábios – e pensa que essa ... variável... também consegue apagar as luzes ?
Nova risada geral. Mas todos queriam ouvir a resposta.
 
- Pois... isso eu não te sei responder... mas sei que se apagaram...
 

 

publicado por entremares às 13:23
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Terça-feira, 24 de Março de 2009

A quem encontrar esta garrafa...

 

“ A quem encontrar esta garrafa... “
Começava assim, desta tradicional forma, a mensagem rabuscada na folha de papel já amarelecido... que retirou de dentro da garrafa.
Descalçou as sandálias de couro e deixou-se cair sobre a areia morna. Na praia, já quase deserta áquela hora tardia, resistiam alguns veraneantes, de máquina fotográfica em punho, perseguindo os bandos de gaivotas ou esperando pacientemente pelo pôr-do-sol. Um casal de turistas corria ao longo da linha de água, acompanhado à distância por um cão felpudo, daquela raça de cães que os míudos – e graúdos – sempre apelidarão de Lassie.
Corria o final de Agosto, um daqueles dias quentes e pesados, onde só a brisa marítima conseguia disfarçar o sufoco das temperaturas de um Alentejo cada vez mais quente, até mesmo ali, na paradisíaca Vila Nova de Milfontes.
A garrafa esverdeada continuou a fitá-la, como se lhe pretendesse transmitir alguma mensagem adicional. Desgastada da viagem, do roçar da areia e de embates de toda a espécie, a corajosa aventureira acabara por cumprir a sua missão, transportando até terra, e bem guardada no seu interior, aquela mensagem escrita numa folha de papel.
 
“ A quem encontrar esta garrafa...”
 
Ainda procurou algum elemento de referência, um nome, mas ou essas indicações haviam desaparecido com o desgaste do tempo, ou nunca haviam sido escritas. De qualquer modo, ao menos tinha uma data de referência, num dos cantos da folha de papel... o que já era um bom sinal.
- 2 de Abril de ... 19... – se aquele risco fosse um dois... – 1929, seria ?
Voltou a murmurar aquela data. – 2 de Abril de 1929. O que teria sucedido ali, naquele tempo, quando alguém lançara aquela garrafa para o mar ? Quem seria o autor da mensagem ? E onde teria sido lançada ?
_ Questões a mais... – deu consigo a pensar – vamos lá ler este papelito... para percebermos melhor a história...
 
“ A quem encontrar esta garrafa...
Hoje é dia 2 de Abril ... o dia do meu aniversário. Vou fazer, daqui a pouco, 18 anos, vou ser adulto... e tudo vai ser diferente, vou poder fazer todas as coisas que agora não posso fazer, e todas as coisas que agora nem me deixam ser. Finalmente.
Vou ser livre...
Vou fugir de casa, pegar o primeiro barco e vou trabalhar para Africa, para o Brasil, ou até para a América.
Aqui, nunca vou passar de filho de pedreiro, nunca vou ter condiçoes de vida, nem posso sequer pedir a ... – parecia que as palavras seguintes haviam sido propositadamente riscadas – e só voltarei para ela quando for rico, importante, tiver um futuro...”
 
Levou instintivamente a mão à perna. Um pouco abaixo do joelho, uma pequena tatuagem a negro recordava-lhe a sensação da partida, a sensação de largar a casa de infância, os amigos, a velha escola às portas do deserto, os avós, os primos e toda a numerosa familia que deixara para trás, já lá iam tantos anos...
Quanto tempo passara ?
Trinta, quarenta anos ? Fora durante a altura da guerra, na década de setenta. A mãe morrera durante um bombardeamento, enquanto fazia as compras no mercado. A irmã mais pequena, Fátima, também estava com ela.
O pai, desencantado com tudo, pegara nos três filhos restantes – Sofia e os dois irmãos mais novos – largara tudo e fugira para o ocidente. Primeiro a Tunisia, depois Espanha, finalmente Portugal.
Encontrara um país simpático e acolhedor, sem rancores, de gente hospitaleira e bem disposta. O pai rápidamente começou a trabalhar na construção civil, alugaram uma pequena casa e Sofia, Mali e Samir depressa aprenderam a lingua e os costumes do país de abrigo.
 
“ A quem encontrar esta garrafa...”
 
Deu consigo a pensar que já estava ali havia mais de trinta anos... e que o seu pequeno filho Tomás, com dois anos, já era mais português do que ela, Sofia, alguma vez fora árabe.
Continuou a ler.
“... e no fim de tudo isto, só desejo a quem encontrar esta garrafa que seja tão feliz como eu vou tentar ser, apesar de não saber ainda sequer para onde vou.
Mas isso também não importa. O importante é ir, e conseguir ter a coragem para dizer adeus, sem saber se os vou voltar a ver algum dia...
Portanto, adeus a todos.
Se eu puder, voltarei.
Sejam felizes.”
 
Sentiu que as mãos lhe tremiam, enquanto dobrava cuidadosamente a pequena folha de papel no bolso da saia. Apanhou um punhado de areia fina e ficou a esvaziá-la com a mão semi-cerrada, como se de uma ampulheta se tratasse, sobre as pernas.
Os grãos de areia iam tapando a pequena tatuagem e escorrendo, unindo-se ao areal.
- O que significa essa tatuagem, Sofia ? – lembrava-se sempre da pergunta, a curiosidade do marido, dos sogros, dos colegas de escola.
- Nada de especial... mesmo nada de especial... – lá respondia ela – é só o meu nome... mas escrito em árabe... foi o meu pai que me ensinou a escrever, sabem... é só uma recordação...
 

 

publicado por entremares às 17:51
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Segunda-feira, 23 de Março de 2009

A bela adormecida

 

 

Aurora acordou em sobressalto. Soergueu-se na cama, apoiada pelos cotovelos e assim permaneceu, atenta aos pequenos ruídos da manhã que lhe entravam pela janela. Nada de anormal – pensou – o mesmo chilrear dos pássaros, o mesmo abanar das folhas das árvores, os assobios dos jardineiros... até um galo mais tardio que ainda teimava em anunciar o nascer do dia, já o sol subia no horizonte do castelo.
Levantou-se e arranjou-se sem pressas, seguindo a rotina igual de todos os dias. A única diferença era... que aquele dia não era um dia igual a todos os outros.
 
Aurora, a princesa Aurora, celebrava naquele dia o seu décimo sétimo aniversário. No castelo, uma multidão de servos apressados corria de um lado para o outro, em preparativos de última hora, antevendo a festa e o baile de gala que o Rei Frederico, o pai de Aurora, fizera anunciar por todo o reino.
Mas Aurora, apesar da beleza e juventude próprias da idade, não se sentia feliz.
O dia do seu aniversário, do seu décimo sétimo aniversário há muito que lhe ensombrava os sonhos e as conversas em surdina dos pais, que prontamente interrompiam à sua chegada. Mas era inútil. O destino estava traçado – o seu destino – e quase desde a sua nascença.
Recordou a história, como a mãe lha contara, por entre lágrimas e abraços apertados; Tudo acontecera por altura do seu baptizado, quando o pai convidara as fadas Flora, Fauna e Primavera, para suas madrinhas. Flora, a fada dos desejos, concedeu à pequena Aurora toda a beleza ... Fauna, a fada da música, bafejara-a com a mais bela voz... e Primavera, a fada da saúde, ia proporcionar-lhe uma vida feliz e risonha, quando a festa foi interrompida pela chegada da fada Maléfica, a fada dos presságios, que o rei Frederico se esquecera de convidar...
Demasiado tarde... e o feitiço estava lançado. Aurora morreria no dia em que completasse dezassete anos.
O resto ? Bem... o resto ela já o sabia de cor... a fada Primavera ainda tentara quebrar o feitiço, mas sem efeito... e o melhor que conseguiu fazer foi minorar-lhe o efeito.
Mas, mesmo assim... Aurora estava irremediávelmente condenada a adormecer profundamente no dia em que completasse dezassete anos, mal picasse a ponta dos dedos na ponta afiada do fuso de uma roca... e com ela, todos adormeceriam no castelo, até à chegada de um misterioso viajante que talvez... conseguisse quebrar o terrível feitiço.
Aurora não se sentia, portanto, particularmente feliz com aquela data de aniversário- pelo contrário, sentia-se revoltada. Não lhe parecia justo sofrer as consequências por algo que não fizera, por algo de que não era responsável... e, ainda por cima, por algo tão mesquinho como receber um feitiço porque uma fada se aborreceu por não ter sido convidada para uma festa de baptizado... não, tudo aquilo era demais...
 
Depois da primeira refeição, percorreu os jardins, meditativa, evitando a companhia das aias. Alimentou os cisnes do lago, colheu algumas flores para as jarras do seu quarto e voltou ao castelo, cabisbaixa.
Mal atravessou o salão das audiências, reparou que a porta da torre norte se encontrava entreaberta.
- Estranho... – murmurou – o pai que sempre insiste para que esta porta nunca seja aberta, seja porque motivo for...
Espreitou. Ninguém.
Uma corrente de ar frio descia os degraus de pedra, das escadas em caracol da velha torre. Deu consigo a pensar que, provavelmente, aquele seria o único recanto do castelo que não conhecia, e pelo motivo daquela porta se encontrar sempre fechada.
- Já agora... é só espreitar, antes de fechar a porta...
Subiu vagarosamente os degraus, prestando atenção a todos os pormenores.
A escada terminava numa pequena sala, igual à de todas as outras torres do castelo; uma sala de tectos baixos, com uma janela em cada uma das paredes, onde habitualmente via os guardas de vigia às redondezas do castelo... em todas as torres, excepto naquela.
A outra diferença... e essa só agora a podia observar, residia na figura de avançada idade, sentada num banco de madeira, a fiar junto de uma roca de madeira já bastante velha, quase tão velha como ela.
- Minha princesa... – e a velha baixou a cabeça, numa vénia prolongada... – que prazer me dá a sua visita...
Aurora estranhou a presença da anciã naquele recôndito local. Porque não se encontrava ela junto de todas as outras costureiras, ou até mesmo nas cozinhas do castelo, onde habitualmente se agrupavam todas, para tagaralear ?
- A minha princesa também quer experimentar ? – e estendeu-lhe o fuso para as mãos.
Aurora recebeu o pequeno objecto afiado e ficou a olhar para ele. Sentiu que a sua memória lhe queria recordar algo, apesar de não fazer a mínima ideia do que fosse.
Por instantes, imagens de um futuro ainda por acontecer passaram-lhe diante dos olhos ... e não conseguiu compreender tudo o que observava. Reviu-se deitada, os pais chorando, sentiu que sonhava, um sonho em que não podia controlar nem os próprios movimentos...
 
Com um movimento repentino, atirou o fuso ao chão.
- Não – gritou, alarmada – Não quero, não quero.
A velha fiadeira ergueu-se, revelando-se mais ágil e menos idosa do que aparentara.
- Princesa Aurora... é o teu destino...
Aurora cerrou os punhos. Um lampejo de memória recordou-lhe algo que tardava em aparecer, à luz dos olhos.
 
- Não... Não é o meu destino, velha bruxa. O meu destino... ainda não está escrito...
E num repente, empurrou a velha vestida de negra pela janela aberta da torre. Com um grito estridente, a anciã despenhou-se no vazio, enquanto Aurora, ainda a tremer, a observava, segurando-se à amurada de madeira.
 
- Não, velha bruxa... – repetiu de novo, em voz baixa – o meu destino... sou eu que o vou escrever... sou eu... 
 
 

 

publicado por entremares às 15:21
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Domingo, 22 de Março de 2009

Tens a certeza ?

 

 

- Tens a certeza ? ... Olha que duvido que seja uma boa ideia...
- ... Claro que é uma boa ideia. Vá, anda, não fiques para trás...
E avançaram mais um passo.
A um ritmo lento, mas constante, a pequena fila de peregrinos, entremeada de turistas, lá foi subindo as escadarias do templo, e lá dentro, contornada a primeira série de colunatas, mergulhou na penumbra.
Um aroma adocicado – mistura de essências – libertava-se de dezenas de pequenos palitos de incenso, espetados em suportes de barro, contornando as estátuas de Buda, rodeando os altares de oferendas.
As estátuas, de todas os tamanhos, representavam aquele que fora o príncipe Sidartha Gautama, depois Buda, nas mais variadas posições, dando origem às figuras do Buda deitado, do Buda meditativo, do Buda da compaixão e ainda de muitas outras figuras de que ele não conhecia o significado exacto. Um em especial lhe chamou a atenção, uma estátua quase em tamanho real, de jade, resplandescendo reflexos esverdeados com as luzes dos lampiões. Por muito tempo, aquela imagem acompanhá-lo-ia, tal a perfeição da expressão, a sensação de paz que transmitia.
Uns passos adiante, deram entrada na grande câmara do templo, onde a figura majestosa do Buda sentado, uma enorme estátua dourada de mais de três metros de altura, ocupava toda a zona central do recinto, delimitada por cordões de flores espalhados no chão.
Os peregrinos inclinavam-se respeitosamente para a frente e tocavam com as mãos a estátua, depositando sobre ela minúsculas folhas de ouro, camada após camada, invocando preces em múrmurios que enchiam a sala, tornando o ar, carregado de incenso, ainda mais denso.
- João... olha, ainda estamos a tempo... não queres mesmo mudar de ideia ?
- Não... não, já te disse que não. E olha quem nem pareces o meu irmão... estás a ser terrívelmente aborrecido...
- Não estou... só continuo a pensar que não deverias fazer... enfim, tu lá sabes...
Levou o dedo à boca, a pedir-lhe silêncio.
Avançaram mais uns passos.
No compartimento ao lado, um monge já idoso, sentado sobre um banco, abençoava oferendas dos peregrinos; estes inclinavam-se sobre as esteiras, entregando ao ancião pequenas estátuas, potes de oferendas e colares de flores. O velho monge mergulhava um ramo de folhas num recipiente e em seguida aspergia as oferendas. Os peregrinos voltavam a recolhê-las, indo depositá-las num dos extremos do altar.
Dois passos à frente, desembocaram numa pequena sala, toda colorida de vermelho escuro, com numerosos lampiões pendurados do tecto de madeira.
Um outro monge, com a tradicional túnica laranja, repetia a aspersão, desta vez sobre a cabeça de cada um dos peregrinos e turistas, que de forma silenciosa e ordeira, se prostravam diante dele. Ao mesmo tempo, repetia interminavelmente uma mantra de indecifrável leitura, tão velha como ele próprio.
Os dois irmãos aproximaram-se.
- Tu não vens ? – perguntou o mais velho
O outro abanou a cabeça. - ... e nem tu devias ir, é a minha opinião...
Avançou, observando e repetindo o ritual de todos os outros peregrinos. Ajoelhou, baixou a cabeça e sentiu as gotas de água fria sobre os cabelos, a escorrer pelo pescoço. Ia levantar-se quando sentiu que lhe agarravam o pulso.
Ergueu a cabeça e reparou que o velho monge o fitava, com um misto de curiosidade e simpatia. Quando deu por si, tinha no pulso uma pequena pulseira de trança rudimentar, segurando meia dúzia de contas de madeira.
O monge sorriu-lhe novamente e largando-lhe o pulso, deixou-o ir.
 
- O que foi, João ? O que se passou ? – quis saber o irmão, ansioso
João ainda não tinha bem a certeza.
Por um momento, sentiu que algo de muito bom – não encontrava outro termo – lhe tinha acontecido. Não sabia o quê, o porquê, nem o como... só sabia que uma sensação de bem estar lhe galopava alegremente pelo corpo, algo que se fosse necessário descrever... provavelmente diria tratar-se de ... felicidade.
- Olha... não sei... – respondeu ele – não sei bem o que aconteceu...
- E o que é essa pulseira que tens no pulso ? Foi o monge que a colocou aí ?
João concordou com um gesto de cabeça.
- João...
- ...
- João... nem me estás a ouvir, pois não ?
- Ahn... oh, desculpa, estava longe... o que dizias ?
- Ia perguntar-te uma coisa... se não te aborreceres, claro...
- ... Essa agora... és meu irmão, podes perguntar-me o que quiseres...
- Pronto... achas que ele percebeu ?
- ... Percebeu o quê ?
- O monge... aquele monge que te atirou a água... achas que ele percebeu que és ... padre ?
- ...
- Estou dizendo, porque... bem... tu é padre, não és ? Ainda por cima, de uma religião diferente... tu és cristão, ele é budista... enfim...
- Ora, ora... meu irmãozinho... e achas que somos assim tão diferentes ... é isso ?
 
 

 

publicado por entremares às 21:30
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Sábado, 21 de Março de 2009

O cartão de crédito

 

 

- Reparaste no preço? Não é uma autêntica pechincha ?
- Manel... não temos dinheiro.
- Eu sei, Maria, eu sei... mas repara, plasmas a este preço... nem na China...
- Da China vêm eles todos Manel... e olha, vamos esquecer isso... porque já te disse que não temos dinheiro...
- E porque não utilizamos o cartão ?
- O cartão ? Qual cartão ?
- O cartão de crédito, claro... sempre é melhor pagar suavemente...
- Pois... isso dizes tu... eu é que faço sempre as contas ... e nem imaginas os juros que eles cobram...
- ... e ainda por cima, neste fim de semana voltam a passar na televisão aquele filme do Indiana Jones que tu tanto querias ver... já imaginaste.... consegues imaginar ver o filme numa televisão destas ?
- Claro que consigo imaginar... mas é melhor nem passar daí, da minha imaginação...
- Mas não achas que devíamos aproveitar a promoção ? Olha que preços destes não se encontram todos os dias...
- Já te disse que não... e agora anda daí, vem ajudar-me a carregar os garrafões de água..
 
- Já está tudo ?
- Já... só não encontrei aqui aquelas embalagens de cereais ... devem estar esgotadas...
- Queres que vá levando o carrinho até à caixa ?
- ... Já vamos, já vamos... vamos primeiro ali ver os tecidos...
 
- Gostas desta cor, Manel ?
- É bonita.
-... mas aquela, os sofás... e aquela, Manel, o que me dizes daquela ?
- A verde ? Também é bonita.
- E de qual gostas mais ?
- ... Desculpa... não percebi... gosto mais para quê ?
- Para os cortinados da sala... pensei aproveitar o fim de semana para substituir os que lá estão, que já estão bem necessitados de reforma...
- Ah, os cortinados... pois... deixa ver... eu gosto das duas cores...
- Mas não gostas mais desta ... não te parece mais alegre ?
- ...
- Pelo menos, podias fingir uma pinga de entusiasmo...
- Ah... desculpa, estava ainda a pensar... pois bem, gosto da verde... e parece-me que também é a tua preferida...
- Claro que é... é alegre, gosto bastante da textura... acho mesmo que vai ficar um espectáculo, lá na nossa sala...
 
O Manel aproximou-se descontraído do expositor, onde se agrupavam os catálogos e as diferentes amostras dos tecidos e todos os acessórios para a confecção de cortinados, reposteiros, saias de mesa e demais decorações de sala.
- Maria... já viste o preço que está aqui marcado ? Deve ser engano, não achas ?
- Não... acho que o preço é mesmo esse... e olha que não estão nada caros, que a minha mãe quando trocou os da sala... pagou quase o dobro...
- Ah...
- Já apontei aqui a referência... depois só temos que indicar na caixa e eles mesmo vão cortar o tecido... vamos embora ?
- Hum... pois sim... claro, vamos embora...
 
- Maria...
- Diz, Manel...
- Vamos mesmo comprar os tecidos ?
- Claro... só tenho o fim de semana para me atirar à costura... assim aproveitamos, enquanto tu te atiras para o sofá a ver a bola, eu fico por ali a cozer aqui as bainhas dos cortinados...
- Pois... sim, eu percebi.. mas não era isso que te ia perguntar...
- Então, o que era, Manel ?
- ... Bem... nós temos dinheiro para comprar isso... agora ? É que eu ainda não recebi o salário deste mês...
- Eu sei, não te preocupes... vamos pagar com o cartão...
- ...
- ...
- ... Ah... com o cartão de crédito, queres tu dizer ?
- Claro. só temos esse...
- Ah... claro, compreendo...ou melhor, não, não compreendo nada. Então e os juros, e essas coisas todas que ainda há pouco estavas a dizer... como é ?
- Ora... eu sei... lá teremos que fazer mais um pequenino sacrifício... mas são lindos, não são ?
-... Claro que são, Maria, claro que são...  
 
 

 

publicado por entremares às 19:30
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Sexta-feira, 20 de Março de 2009

A praia das sereias

 

 

O sol entardecia na praia deserta. Uma a uma, foram descendo em círculos largos, grasnando ruidosamente, formando grandes grupos de penas cinzentas e brancas, recortadas contra a espuma branca.
A maré continuava a descer, deixando na areia sulcos de ondas e espuma, arrastando as conchas mais leves e atirando para a praia pedaços de madeira, garrafas vazias e um sem número de pequenos plásticos coloridos, restos da omnipresente civilização…
As gaivotas em terra agitavam-se de um lado para o outro, formando pequenos bandos familiares que disputavam os melhores recantos da falésia, protegidas do vento norte e debicando furiosamente as invasoras, sempre que alguma mais afoita tentava ocupar território que não o seu.
O espectáculo repetia-se, todas as tardes, ao cair do sol.
A praia deserta, afastada das estradas mais movimentadas, era escassamente procurada – de tal modo que decorriam dias inteiros sem que as gaivotas tivessem por companhia qualquer ser humano; quando muito, algum cão vadio surgia uma vez por outra no alto da falésia, em busca de alimento ou por mera curiosidade.
Fora essa companhia ocasional, as gaivotas podiam considerar-se as únicas e legítimas proprietárias da praia das sereias.
 
Quando os primeiros raios de sol tocaram a areia da praia, já o dia começara há muito para os bandos de gaivotas. Os ninhos, protegidos nas reentrâncias das escarpas, fervilhavam de pequenos movimentos e grasnidos agudos, com as crias a reclamarem o seu quinhão de alimento. Os progenitores, numa escala que o instinto já aperfeiçoara ao longo de gerações, revezavam-se nas corridas até ao mar, onde pescavam pequenos peixes que depois vinham regurgitar para as crias esfomeadas.
 
Sobre a areia branca, o corpo ondulante espreguiçou-se, esticando os braços num esgar de preguiça mal contida. As gaivotas ignoraram a sua presença, já habituadas aquela visita matinal, que se repetia desde há muito tempo. Sabiam até que o ritual da visitante incluía um longo banho de sol – sempre ao amanhecer – o recolher de algumas conchas ou búzios para, logo depois, mergulhar nas águas frias do oceano e desaparecer… para só voltar a ser vista na manhã seguinte, aos primeiros raios de sol…
Aquele dia não foi, portanto, diferente de todos os outros.
A visitante espreguiçou-se novamente, o corpo já morno de sol. Com a mão, afastou a longa cabeleira dourada, enrolando-a sobre o pescoço. Os olhos, muito azuis, observaram cuidadosamente todo o areal, a falésia, a superfície das águas. Nenhum vestígio da presença humana.
Sacudiu a areia que se lhe colara ao corpo nu. Ao sol, os pequenos grãos refulgiam como estrelas, escorrendo pela pele molhada.
Apesar de lhe dar enorme prazer ficar ali, a aquecer-se ao sol da manhã... o tempo urgia, e não podia furtar-se aos seus afazeres.
Com um movimento delicado, arrastou a longa cauda azulada para junto da água. A barbatana chapinhou alegremente e um jacto de espuma ajudou a retirar os ultimos grãos de areia do corpo.
Mergulhou a cabeça e ajeitou a longa cabeleira com um travessão de osso.
A longa barbatana azulada, prolongando-se a partir da cintura esguia numa cauda elegante, surgiu à tona de água.
Olhou uma última vez para o areal dourado e para a falésia, repleta de gaivotas.
Não valia a pena dizer adeus.
No dia seguinte... voltaria de novo.

 

publicado por entremares às 17:27
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Quinta-feira, 19 de Março de 2009

A adenda

 

 

- Como estamos de contagem ?
- … Hum… deixe-me ver… estou à frente, creio… sim… estou mesmo.
- Você é terrível… estamos a fazer jogo limpo ?
- Essa agora …. Você conhece-me … eu jogo sempre limpo… você é que nunca gostou de perder…
- Pois… mas como estamos, hoje ? Quero dizer… os valores exactos ?
- Ah, os valores exactos… bem, deixe-me ver… tenho… tenho 100 de avanço…
- Tantas, assim ?
- Ora nem mais…
- Como é que você conseguiu isso ? E onde está aquela meia dúzia que eu consegui salvar… aquelas do naufrágio ?
- Já foram contadas…
- Tem a certeza ? Não está outra vez a querer fazer trapaça ?
- Ora, ora… então como é ? Isto no final ... tem ou não tem que dar um empate ? Não foi isso que combinámos ?
- Lá isso foi… mas eu estou a ver o final a aproximar-se e … não me está a agradar vê-lo assim tão à frente…
- Mérito meu, meu caro… mérito meu…
- Isso é o que você diz. Você só vai à frente porque… eu consinto. Ou já se esqueceu de quem é que manda aqui ?
- …
- Pois… mas eu sou desportista… gosto de um bom desafio… apesar de que esta matéria prima com que estamos a jogar parece favorecê-lo mais a si que a mim…
- E ainda bem… não foi você que os criou ?
- Fui… lá isso fui…
- Então não me culpe por isso…
- Fiz tudo um pouco à pressa… uma semana, veja lá… criei tudo numa semana… sete míseros dias… alguma coisa havia de ficar imperfeita…
- Oh, meu Deus… como você se está sempre a queixar…
- Silêncio, Satanás… e não invoques o meu Nome em vão… respeitinho, muito respeitinho…
- Desculpe, Senhor… vamos então continuar ?
 
- E aquele ali, para quem é ? – quis saber Satanás.
- Evidentemente, é meu. Já estive aqui a ler o currículo e … é claramente meu.
- Desculpe… mas não concordo.
- Não concorda ? Ora essa… e porquê ?
- Porque o dito fulano foi um pilantra da pior espécie… roubou os amigos, falsificou documentos… eu sei lá, um rol de coisas, todas do meu pelouro…
- Pois… mas ele arrependeu-se no fim, não foi ? – e Deus sorria, agitando o dossier com o currículo da alminha em disputa.
- Foi… mas esse dossier também não está actualizado… aliás … eu suspeito que ele até tentou falsificar esse documento, para ver se o conseguia enganar…
- Enganar ? Você está sonhando… Acha que alguém ia conseguir enganar-me ? Eu sou Deus…
- Mesmo assim… eu se fosse a si, lia primeiro aqui esta adenda a esse currículo… e no fim, vai reconhecer que essa alminha tem lugar garantido lá nos meus infernos…
E Satanás estendeu um par de páginas agrafadas, encabeçadas por uma fotografia do falecido, com algumas linhas escritas e uns esquemas em anexo.
- Leia, leia… principalmente a segunda página…
Deus começou a ler, mas não viu nada de especial.
- Lá no fundo… - e Satanás insistia – onde diz profissão…
Deus começou a ler, e no mesmo instante a sua expressão sorridente foi-se transformando. A testa enrugou-se e os olhos semicerraram-se com desagrado.
“ Profissão… político… exerceu funções… no ministério … depois foi eleito… “
 
Deus atirou as duas folhas de papel ao ar, desagradado.
Pronto, está bem – resmungou, perante o ar vitorioso de Satanás - … não se fala mais no assunto… este é seu … e já percebi que até vai ter direito a tratamento especial…

 

publicado por entremares às 17:01
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Quarta-feira, 18 de Março de 2009

Nós... e Eles

 

 

Ergueu-se, sorrateiro, apontando a arma.
A espera havia valido a pena. Instantes depois, um par de orelhas espreitou por entre as silvas, para logo de seguida surgir o resto do corpo; um enorme coelho cinzento, felpudo, que continuou a saltitar até se imobilizar diante de uma pequena moita.
O caçador apontou cuidadosamente, levando o dedo ao gatilho.
- Desculpe... não está a pensar utilizar isso, pois não ?
O caçador desviou o olhar – Quem lhe estava a dirigir a palavra, e logo naquele momento ? Não saberia que iria afugentar a presa ?
Mas não... não vislumbrou vivalma. Habitualmente, caçava sempre sózinho, mas é verdade que cada vez mais se multiplicava o número de caçadores e como tal... não se admiraria que tivesse ocupado, sem querer, o local priveligiado de algum outro caçador.
Mas não viu ninguém.
Felizmente, o coelho permanecia imóvel. Voltou a apontar cuidadosamente mas...
- Sinceramente... já imaginou como se sentiria... se lhe estivessem a apontar a si... essa coisa ?
O caçador parou, subitamente confuso. Pensando melhor, a voz não provinha de nenhum caçador ali das redondezas... mas sentiu-a dentro da sua própria cabeça, com uma nitidez estonteante.
O coelho fitava-o agora directamente, olhos nos olhos, as orelhas a estremecer ao de leve.
- Sim... sou eu, não precisa de ficar assim tão surpreendido... – continuou a voz.
O caçador abriu os olhos, desmedidamente. Depois, esfregou-os com força. Mas apesar de todas as tentativas para se convencer de que estava a sonhar, a voz insinuou-se novamente.
- ... Então ? Posso seguir tranquilamente o meu caminho ?
O pobre caçador ainda não conseguira voltar a fechar a boca, pasmo de admiração. Pousou a espingarda e permaneceu imóvel, sem reacção, como se todos os músculos do corpo tivessem recebido ordens para nem pestanejar... e assim permanecer.
- Mas... mas... o que se passa ... o que se passa aqui ? – deu consigo a balbuciar.
- Nada... – respondeu-lhe o coelho – não se passa rigorosamente nada... excepto que você queria pôr um fim à minha vidinha... e eu gostava de saber porquê...
O caçador, homem já de meia idade, julgava já ter visto muita coisa deste mundo... mas deu consigo a pensar que aquilo que lhe estava ali a acontecer não era... não podia ser, não podia estar a acontecer. Ou bebera um pouquito mais que o devido – o que não fora o caso – ou estava a sonhar – o que também não parecia – ou estava a ficar maluquinho – e esta última hipótese era, de longe, a mais preocupante.
- Acorda, homem... acorda. Estás a ter um pesadelo... vê se acordas – e beliscou-se no braço com toda a força que conseguiu.
Quando abriu de novo os olhos, esperava encontar algo de diferente – mas a única diferença que sentiu foi uma dor no braço e uma marca arroxeada no local da beliscadura. E, claro... ainda havia outro pormenor... o coelho ainda continuava especado no mesmo local, a fitá-lo atentamente.
- Posso ir-me embora, então ? – voltou de novo a coelho a questionar.
- Os coelhos ... não falam – conseguiu finalmente gaguejar o caçador – isto ... isto é tudo uma alucinação...
O coelho espetou uma das orelhas ao alto.
- Uma alucinação ? Por mim... até pode ser, olhe que não me importo nada... mas continuo a dizer-lhe que não é nada simpático andar por aí aos tiros, a assustar a minha familia... afinal de contas, fizemos-lhe algum mal ?
- Ahn... eu ...
O coelho emitiu um som prolongado, vagamente semelhante a um assobio.
De imediato surgiram, de entre as rochas, meia dúzia de orelhas e logo a seguir, outros tantos coelhinhos, de várias cores, bastante pequenos. No final, vinha um outro coelho, também cinzento, bastante corpulento.
- Vá, crianças... passem agora... com cuidado... vejam lá onde colocam as patas... a vossa mãe já irá ter convosco...
E lá foram passando, um a um, diante do caçador, rumo ao amontoado de pedras que lhes estaria a servir de toca improvisada.
Depois de todos terem desaparecido pelo apertado orificio, o coelho cinzento ergueu-se nas patas traseiras, parecendo ainda maior.
Bateu repetidamente com uma das patas no chão, para assinalar devidamente a sua presença e deu um pequeno salto em direcção à toca. Mais um salto, deteve-se e virou a cabeça felpuda para o caçador, que continuava imóvel, presenciando atordoado todo o espectáculo.
- ... E para a próxima vez... porque não vai usar essa coisa com os seus vizinhos ? É que você nem imagina o susto que isso provoca aqui aos nossos filhotes... veja lá se pensa nisso, está bem ?
Mais um salto, e desapareceu no interior da toca.
O caçador continuou estático, a arma pendurada das mãos, ora olhando para a moita das silvas, ora para o orificio por onde haviam desaperecido os coelhos.
Um leve estalido de ramos a quebrar trouxe-o de novo à realidade. Bem à sua direita, um pequeno coelho castanho espreitava por entre as silvas. Levantou rápidamente a arma e fez pontaria.
No mesmo instrante, um som familiar, levemente semelhante a um assobio, fez-se ouvir.
O pequeno coelho, parecendo responder ao som, bateu com força as patas traseiras no chão, e num salto acrobático, desviou-se da bala e mergulhou no abrigo da toca protectora.
O caçador resmungou, contrariado.
Era melhor – aliás, nem podia ser de outro jeito – esquecer o sucedido. Nada acontecera. Não acontecera absolutamente nada, e ele iria simplesmente mudar de local, procurar outras paragens... à procura de melhor sorte.
Ainda se estava a erguer, para arrumar todas as suas coisas, quando voltou a ouvir uma voz, já bem familiar, a ecoar-lhe dentro da cabeça.
- Vês ? Vês ? Agora já percebes porque quando o teu pai diz para andares ao pé de nós... é mesmo para andares ao pé de nós ? Já percebeste ?
E, lá bem ao fundo, uma outra vozinha, tímida, respondeu.
- Desculpa, pai...

 

publicado por entremares às 16:45
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Terça-feira, 17 de Março de 2009

Um trevo de quatro folhas

 

 

Seria verdade?
Debruçou-se para a frente. Era... era mesmo... não havia dúvidas. Encontrara-o.
Finalmente.
Com as mãos trémulas de excitação, apanhou o pequeno trevo, o seu pequeno trevo de... quatro folhas.
Há quanto tempo o procurava? Dois anos? Três anos? Já nem se lembrava ao certo, mas sabia que não havia dia que passasse que ele não fosse para o jardim, para o quintal, até para o fundo da rua à procura... em todos os recantos húmidos, junto dos canteiros de flores, atrás das árvores... e sempre sem sucesso.
Os trevos, essas fugidias plantinhas da sorte... cresciam profusamente por todos os lados, mas só com... três folhas. Normais, sem absolutamente nada fora do vulgar, de um verde pouco apelativo, tristonho até, mas... eram as plantas da sorte, e portanto, que importância tinha a cor, a forma ou até o tamanho?
Nenhuma, absolutamente nenhuma.
A mãe sempre lhe dissera – Pedrito... quando encontrares um trevo de quatro folhas... poderás desejar o que quiseres... e o teu desejo realizar-se-á. Mas tens que ser tu mesmo a encontrá-lo, e mais ninguém... compreendes?
O Pedrito, com os seus doze anitos, compreendera perfeitamente. Com o entusiasmo próprio da idade, procurara incansável o seu trevo, com sol ou chuva, calor ou frio, sem desânimo, com a firme convicção de que o encontraria, nem que demorasse anos...
E então, poderia pedir o seu desejo... e ele realizar-se-ia...
Deu meia volta e voltou a casa, o mais depressa que pode.
- Mãe... mãe... encontrei... olha, encontrei... – ia gritando, enquanto se aproximava das traseiras da casa, onde a mãe continuava a pendurar as peças de roupa no estendal.
Alertada pela gritaria, a vizinha Rosa debruçou-se da janela da cozinha, como fazia sempre que alguém passava na rua, ou falava mais alto.
- Pedrito... cuidado, que ainda cais... – e a mãe pousou o cesto da roupa no chão e correu para ele.
- Mãe, mãe... encontrei, olha, a sério que encontrei... – e a voz tropeçava-lhe nas palavras, tal a excitação – olha, vê bem... quatro folhas, quatro folhas...
E estendeu as duas mãos para a mãe, segurando nelas o seu mais precioso tesouro.
A mãe abraçou-o, sorridente.
- Eu nunca duvidei que o encontrarias, meu filho... – e a mãe devolveu-lhe delicadamente o pequeno trevo, fechando-lhe as mãos em concha sobre ele - ... tu quando queres uma coisa, nunca desistes, eu sei como tu és...
Passou-lhe a mão pelos cabelos em desalinho, a cara corada de energia quase a explodir.
- E agora, mãe ... já posso pedir o meu desejo ? Já posso ?
A mãe continuou a sorrir.
- Claro que podes... já sabes que o trevo de quatro folhas é como a tua fada dos dentes... os teus desejos sempre se realizaram, não é verdade? ... e então, o que vais desejar ? Mais um brinquedo ?
- Oh, mãe... então... desta vez é que vai ser... eu vou voltar a andar...
A mãe ficou imóvel, olhando para o pequeno Pedrito. A cor fugiu-lhe do rosto e, por momentos, sentiu o chão abrir-se, bem por debaixo dos pés, num abismo enorme, num poço sem fundo.
- Pedrito... – balbuciou... não compreendo...
- Oh, mãe... – e o Pedrito apoiou-se sobre os cotovelos e ergueu-se o mais possível, sobre a cadeira de rodas – então não percebes ? Desta vez é que vai ser... eu vou conseguir andar ... novamente... vai ser esse o meu desejo...
- Mas, Pedrito... tu sabes... bem, o médico disse-te que.. – e a mãe não conseguiu terminar a frase. Um nó na garganta silenciou-lhe a voz, e os olhos húmidos não conseguiram conter as lágrimas, para espanto do filho que, ainda trémulo de excitação, continuava repetindo - ... mãe, a sério... vais ver que se vai realizar... os outros desejos ... todos se realizaram... este também se irá realizar...
A mãe agarrou-se a ele, escondendo a cara por entre os braços.
Três anos atrás – fatídico dia, aquele – o Pedrito saira a pedalar, como de costume, cheio de energia, porta fora, na sua biciclete vermelha, reluzente. Era domingo.
Mal transpusera os portões do jardim, distraído, nem reparara no automóvel que circulava pela rua, no seu passeio matinal.
O resto... o resto fazia parte do passado, das intermináveis visitas ao hospital, da convalescença numa cadeira de rodas e do diagnóstico atroz do médico, quando lhe dissera, emocionado... que o Pedrito, o seu Pedrito, passaria o resto da vida agarrado aquela cadeira de rodas.
- Mãe ? – e o pequeno Pedrito sentiu a face molhada com lágrimas que nem eram suas.
- Sim, Pedrito...
- Porques choras ?
- Pedrito...
Ainda tentou abrir a boca, numa tentativa vâ de explicar que nem todos os desejos poderiam ser realizados por um pequeno trevo de quatro folhas... mas não foi capaz.
Desconsolada, tentou sorrir.
Mas os olhos traíram-na e só as lágrimas continuaram a correr...

 

publicado por entremares às 16:05
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Segunda-feira, 16 de Março de 2009

O guardião

 

 

- Não, não e ainda mais uma vez... não.
- Tens a certeza ?
- Claro que tenho a certeza.
- Mas, repara bem... não demorava tempo nenhum...
- Não insistas... não vale a pena. E, por falar nisso, também não deverias ir...
- ...
- Quando foi a última vez que lá estiveste ?
- Ontem... mas garanto-te... foi só um pedacinho... entrei e saí, nem cheguei bem a estar lá...
- Tu és incorrigível, Gabriel. Quando largas esse vício do jogo ?
- ... Estou a tratar disso, tu bem sabes... mas vê bem, precisas de me dar um certo tempo... estas coisas não se conseguem assim do dia para a noite...
- Estás a dar cabo da tua vida... e a impedir-te de cumprir com as tuas tarefas... e depois, quem sofre com isso, quem é, quem é ?... sou eu.
- Eugénio... eu sei, eu sei que tens toda a razão... eu sei que tu és um bom amigo... mas repara... desde que me conheces... já reparaste que eu estou diferente, não estou ?
- Estás ?
- ... Claro que estou, Eugénio... então eu já nem bebo... nem um cheirinho, e tu sabes que é verdade...
- Pois... então e as noitadas ?
- As noitadas ? ... Então... fiz alguma coisa de errado ?
- ...e ainda perguntas ? Oh, Gabriel... então não era suposto tu seres uma fonte de bons exemplos e essas coisas todas ? Não devias dar-me bons conselhos, zelar pela nossa amizade... e pela minha felicidade? Não devia ser assim ?
- Oh Eugénio... mas é claro que sim, é claro que sim... tu sabes que eu gosto imenso de ti... aliás, sabes muito bem que a minha missão é proteger-te, zelar por ti... mas tu nem sempre precisas de mim, às vezes até estás a dormir e ...  olha que também foram só um par de ocasiões...
- ... Saiste-me cá um mulherengo... nunca pensei... sinceramente, nunca pensei...
- Eugénio... é só uma fraqueza da minha parte... e que bem mal me faz, como sabes... o meu coração já não é o que era... e cada vez me sinto mais pesado...
- O que estavas à espera ? ... Bebias como um cacho... passavas as noites nos casinos... ou nos bares, e que me lembre, nunca saías de lá sózinho... eu nem sei como é que conseguiste aguentar tanto tempo... mas o problema maior é que tu és um inconsciente...
- Eu, Eugénio ? Um inconsciente ?
- Exactamente... Quantas vezes dou comigo a chamar-te... a pedir-te ajuda... e tu nem me respondes ? Não devia ser essa a tua função ? Ouvires ? Zelar por mim ?
- ...
- ... Esse silêncio significa o quê ? Não tenho razão ?
- Claro que tens ... sabes que estou envergonhado...
- Por acaso estou vendo... aliás, é das poucas coisas que consigo perceber em ti, é quando estás envergonhado... ficas com as penas um bocado cor-de-rosa, nunca percebi porquê ...
- Desculpa, Eugénio... vou tentar emendar-me... a sério...
- Oh, Gabriel... como eu gostava de acreditar em ti... é que, sinceramente... acho que temos os papéis errados nesta vida...
- Como assim, Eugénio ?
- Ainda perguntas ? Então não és tu, Gabriel, o meu anjo da guarda ? Não devias olhar por mim, guiar-me, zelar por mim, ajudar-me ...
- Tens razão, Eugénio, tens razão...
- Eu sei que tenho razão, Gabriel... como sempre. Vá, vamos lá, dobra lá as asas... vai mas é deitar-te... já são mais que horas... que belo anjo da guarda me saiste...

 

publicado por entremares às 15:10
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Domingo, 15 de Março de 2009

Um peixe chamado Lancelot

 

 

A mãe oferecera-lhe o primeiro peixe dourado pelo seu décimo aniversário; o peixe, o aquário, um bau do tesouro e uma roda de leme, que girava lentamente ao sabor das bolhas de ar, sempre que ele ligava o interruptor da minúscula bomba. O ar descia pelo tubo, movia a roda do leme, subia pelas paredes da gruta artificial, agitava as folhas das algas e emergia à superfície, com o característico som borbulhante das águas agitadas.
Depois... bem... depois tomou-lhe o gosto; mais um peixinho vermelho, dois azuis com riscas amarelas, um todo negro e de longas barbatanas... até que percebeu que o pequeno aquário já não era suficiente para tantos ocupantes.
Teve de esperar portanto por mais um aniversário, para realizar o seu sonho; um aquário enorme – ele próprio caberia lá dentro, com jeitinho – repleto de adereços, iluminado, com um sistema automático de limpeza e mais um sem número de inovações tecnológicas que faziam com que as tarefas de limpeza manuais se resumissem a ... zero.
Sobrava assim todo o tempo do mundo para disfrutar daquele recanto azul e do calmo deambular dos peixinhos coloridos.
O pequeno Raul passava horas... junto do seu aquário. Colocara-o no quarto, bem ao lado da sua escrivaninha e assim, enquanto rabiscava os trabalhos da escola, ia espreitando os seus amiguinhos, em miradas fugidias. Em especial, a um deles.
O “Lancelot”, - assim o baptizara – chegara ao aquário por último, oferecido pela tia Mimi no Natal anterior. Pertencia à espécie dos Pomacentridae, sub espécies dos Ocellaris... mas claro que ninguém o tratava por nome tão pomposo. Não.
Lancelot era simplesmente um ... peixe palhaço; Laranja vivo, com o corpo percorrido por duas grandes faixas azul vivo, transversais, limitadas por franjas branco brilhante. Sempre que se movia, a luz reflectia-se no corpo, espalhando reflexos coloridos por todo o aquário.
Raul gostava de todos os seus peixinhos mas... Lancelot era especial, tão especial que por vezes até duvidava que ele fosse simplesmente um peixe.
E porquê ?
Porque Raul contava histórias aos peixes... falava com eles... e desde logo percebeu que o Lancelot lhe respondia com mais atenção que qualquer outro. Estivesse onde estivesse, procurava o canto mais próximo das paredes do aquário, encostava a cabeça ao vidro e por ali ficava, quase imóvel, abrindo e fechando a boca, devorando as palavras que o Raul ia contando. No final de cada história, atirava-lhe um pedacinho de pão e Lancelot não desperdiçava a oportunidade, abocanhando-o de imediato e fugindo para dentro da gruta com ele, antes que os restantes peixes do aquário dessem conta do sucedido.
Casualmente, um dia colocou uma pedra maior sobre a gruta, uma pedra lisa e que mergulhando suavemente na água, reconstituía na perfeição uma pequena piscina natural, com um declive suave onde os banhistas imaginários poderiam deleitar-se, deitados ao sol, os pés dentro de água. Para o cenário ser mais real, colocou sobre a pedra um dos seus velhos bonecos Action-Man, já com algumas mazelas – mas não importava, o cenário continuava composto, e isso era o mais importante.
 
Numa bela manhã, logo a seguir à taça de cereais e às torradinhas, ia pegar na mochila da escola quando reparou em algo de diferente, no seu aquário.
Mal se aproximou o suficiente, percebeu que o seu Lancelot estava com um comportamento diferente... no mínimo estranho, até; o pequeno peixe palhaço contorcia-se vigorosamente sobre a pedra, metade do corpo imerso e a cabeça de fora de água. Mal deu conta da chegada de Raul, imobilizou-se naquela estranha posição.
- Esta agora.... estará doente ?
E, com todo o cuidado, pegou no pequeno peixe e devolveu-o às águas profundas do aquário.
 
Mal desviou o olhar, um “ plof” característico soou nas suas costas, como se algo estivesse a chapinhar sobre a água.
Lancelot acabara de, num salto desajeitado, aterrar literalmente sobre a pedra lisa, e parecia fitá-lo com atenção, imóvel.
Sem saber muito bem o que pensar de toda a situação, Raul continuou a arrumar a sua mochila, dirigindo-se ao pequeno peixe em voz baixa, como se este o pudesse ouvir ... e compreender.
- ... Olha... não sei o que estás a fazer ... mas agora tenho mesmo que ir.... prometo que se te portares bem... depois conto-te duas histórias... estás a ouvir ? ... Duas... em vez de uma...
Preferindo não pensar mais sobre o assunto, colocou a mochila às costas e saiu porta fora.
 
Nos dias seguintes, poucos conseguiram ver Raul fora do quarto. Saía a correr para as aulas, quase atrasado, voltava a correr, comia e fechava-se no seu pequeno recanto, ignorando o computador, a consola, a televisão... enfim, uma coisa nunca vista.
 
Naquele domingo, Raul estava mais apressado que nunca, por regressar a casa. Haviam partido na sexta-feira, pela tardinha, rumo ao norte, para visitar os avós. A viagem era longa, aborrecida e cheia de curvas, mas um fim-de-semana com eles, na quinta, justificava todo o cansaço. E o avô Manuel, sempre que o apanhava lá, levava-o sempre consigo, para tratar as vacas, as ovelhas, dar de comer às rolas e aos pombos... até o deixava subir para cima do tractor, quando precisava de ir até ao poço encher os garrafões de água.
O Raul adorava a quinta.
Mas agora, enquanto a mãe metia a chave à porta de casa, o coração quase que lhe saltava do peito, de preocupação.
O seu Lancelot... como estaria o seu Lancelot ?
Mal entrou, correu desvairado até ao quarto.
Abriu a porta e os seus olhos procuraram instintivamente o pequeno peixe palhaço, desejando não ver... aquilo que estava a ver.
Sobre a pedra lisa, parcialmente submersa, Lancelot permanecia imóvel, os olhos já sem brilho, ainda à espera da história diária... que nunca chegara.
Raul tocou-lhe ao de leve, na vâ esperança de o trazer de volta à vida... mas sem êxito, e mesmo antes de lhe tocar já compreendera a inutilidade do gesto.
- Lancelot... desculpa ter demorado tanto...
O pequeno peixe palhaço já não o ouvia.
Por uns instantes, os outros ocupantes do aquário vieram espreitar, mas depressa se desinteressaram e continuaram o seu eterno deambular, contornando as bolhas de ar que se desprendiam do fundo.
O pequeno Raul deixou-se cair, desanimado, sobre a cadeira.
Quem ouviria agora as suas histórias ?
 
- Lancelot.... tenho saudades tuas...

 

publicado por entremares às 16:48
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Sábado, 14 de Março de 2009

Auto retrato

 

 

Uma última pincelada... não... talvez um pouco mais de sombras ali ao canto... sim, sem dúvida... muito mais real... um último risco nos cabelos... e ... pronto.
Afastou-se um pouco e, de spray em punho, borrifou toda a superfície do quadro com o fixador.
De imediato, as cores ganharam um colorido brilhante, enquanto a vaporização do produto revestia toda a superfície da tela de uma finíssima camada protectora, impermeável ao pó e à humidade, saturando toda a pigmentação das tintas com tonalidades mais vivas, como se de uma superfície molhada se tratasse.
Pronto... estava terminado.
 
Retrocedeu dois passos, para contemplar a obra.
Uma figura feminina, de longos cabelos brancos, pele morena e enrugada pelas marcas evidentes do tempo, lenço colorido pendido dos ombros e um olhar – e que olhar – penetrante, muito violeta... sobressaía do fundo acinzentado de um areal – talvez uma praia – ocupando toda a parte central da tela.
O retrato devolveu-lhe o olhar, um olhar carregado com a tranquilidade da idade, de sorriso cativante. Aqueles olhos transbordavam de cor, de um violeta tão vivo como o alecrim dos campos, com uma expressão de quem está a contemplar o mundo, como se o mundo real estivesse dentro da moldura e aquele ali fosse sómente... uma fantasia.
 
Com muito cuidado, assinou o seu nome, no canto inferior. Depois, com a ponta afiada do estilete, riscou a moldura, escrevendo:
 
“ Auto retrato – Sofia “
 
A porta do pequeno estúdio abriu-se e, por uns segundos, os ruídos e som ambiente do mundo exterior misturaram-se com o cheiro forte das tintas.
- Já terminaste?
Ela lançou-lhe um aceno de confirmação, enquanto soprava uma madeixa de cabelos que teimava em cair-lhe sobre os olhos.
- Já... já terminei. Queres vê-lo ?
- Claro que quero. Posso ?
Ela afastou-se para o lado. O marido aproximou-se e, por longos instantes, quedou-se imóvel a fixar o quadro, bebendo-lhe os pormenores.
- Gosto muito do olhar... tem um brilho... que me agrada muito... tem energia.
- Ainda bem que gostaste...
- Que idade lhe darias ? – e o marido apontava para o quadro – talvez uns setenta ?
- Sim... concordou ela – ou até um pouco mais...
O marido aproximou-se mais. Os óculos escorregaram-lhe pelo nariz, enquanto observava com interesse os rabiscos na moldura.
- E isto ... o que é ?
- É o nome do quadro... todos os quadros devem ter um nome, não achas ?
- Pois... isso eu percebo... mas tu escreveste aqui “ Auto retrato “... ou sou eu que estou a perceber mal ?
Ela lançou-lhe um sorriso ternurento.
- Não, não estás a perceber mal... isso é mesmo assim, é um auto retrato da Sofia, da tua mulherzinha pintora de trazer por casa...
Ele hesitou, pesando bem as palavras.
- ... Oh, Sofia... o olhar da senhora do quadro... até que me parece bem o teu... mas quantos anos disseste que tinha aquela personagem que pintaste ?
- ... algures entre os setenta e os oitenta...
 
Ele abraçou-a, passando-lhe a mão pela cabeleira negra.
- Sofia... mas tu tens a mesma idade que eu, não tens ? ... Ainda vamos fazer quarenta, se não me falham as contas...
- ... lá isso é verdade... – e ela ria bem disposta - ... e então, há alguma coisa que me impeça de desenhar um auto retrato de quando eu for velha ?
- ... pois... fiquei sem palavras... então, aquela ali... és tu ?
- Por enquanto... ainda não... mas se tudo correr bem... olha que não me importava nada de chegar aquela idade com aquele visual... e tu, achas que eu vou ter aquele aspecto ?
O marido não sabia muito bem o que lhe haveria de responder.
- Bem... a resposta é fácil... seja lá o que for que eu responda ... vamos ainda ter muitos anos até descobrirmos se acertei ou não... não é ?

 

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Sexta-feira, 13 de Março de 2009

Millenium Falcon

 

 

- João...
- Vou já...
Com um movimento seguro, a roda do leme girou suavemente e o pequeno veleiro descreveu um arco, a favor do vento, apontando a terra.
A vela mestra, enfunada pela brisa da manhã, emitiu uma série de estalidos de lona retesada e a quilha lá foi rasgando as águas, silenciosamente.
O “Falcon”, nome carinhosamente atribuido ao pequeno veleiro em homenagem à “ Millenium Falcon”, a nave do capitão Hans Solo e da sua Guerra das Estrelas, luzia de um branco brilhante, acabadinho de pintar. O convés, encerado até ao mais pequeno pormenor... as escotilhas imaculadas, até a âncora... pintada artisticamente de azul.
Como não sentir orgulho de tamanha beleza ?
O João era – sempre fora, aliás – um apaixonado pelo mar.
O mar tinha... como explicar ? – uma atracção, um magnetismo especial que, depois de provado, depois de sentido... era impossível largar.
O mar significava liberdade, a liberdade dos grandes espaços vazios, o silêncio das ondas fustigando incessantemente o casco, as gotas de espuma projectadas no ar, a brisa molhada a salpicar o rosto... o mar significava a solidão voluntária, a calma dos dias sem horários a cumprir, longos crepúsculos e noites tranquilas, sob um tecto de estrelas...
A paixão incutira-lha o pai, piloto de rebocadores.
Pelo seu sexto aniversário, levara-o consigo num par de viagens, puxando os grandes cargueiros do porto até ao exterior da barra, e os olhos do João, a partir desse dia, nunca mais haviam sido os mesmos.
- João... Então ?
- Vou já, é só um segundo... é só ajustar a vela...
Nunca era só um segundo. Depois de ajustar a vela, ainda precisava de verificar o leme – aquele guinchar só podia significar falta de óleo – dar uma vista de olhos no comando da direcção e verificar o estabilizador de bombordo; ou seja, haveria sempre coisas a fazer, quando se tratasse de assegurar a manutenção de um barco, fosse ele pequeno ou grande, veleiro ou motorizado. O Falcon não poderia ser portanto a excepção.
Adquirira-o no verão anterior, numa daquelas feiras temáticas, dedicadas ao lazer e às actividades ao ar livre. Com muito sacrifício, é certo.
Mas aquele barco era a sua companhia, sempre que podia libertar-se das tarefas quotidianas. Ali passara muitas horas, a retocar os cromados, a substituir as cordas já ressequidas, a cozer as costuras das velas e... – o que lhe dera uma enorme prazer – a pintar o nome ... “Falcon”, em grandes letras azuis, no casco do veleiro.
 
- João... não te volto a avisar...
- Vou já, mãe... agora é a sério, vou mesmo já...
Pousou o comando remoto e ajeitou melhor a corrente da âncora. O pequeno veleiro telecomandado, suavemente encostado ao cais improvisado, junto aos seus pés, imobilizou-se.
O João ergueu-se e, do alto dos seus quase doze anos, observou o grande lago do jardim, onde nesse momento um casal de patos cinzentos grasnava ruidosamente.
Contrariado, apressou o passo em direcção a casa. Não era boa ideia testar a paciência da mãe, principalmente quando o almoço já estava servido e a arrefecer sobre a mesa da cozinha.
- Quando for grande...
Mas ainda não o era.
 
Um cheiro inconfundível guiou-lhe os passos até à porta da cozinha. A mãe – como todas as mães – era só a melhor cozinheira do mundo e ele, João, estava esfomeado.
A brincadeira, o lago e o pequeno veleiro teriam que ficar para mais logo...

 

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Quinta-feira, 12 de Março de 2009

Uma declaração de amor

 

- Diz-me se ainda gostas de mim...
- Maria ...
- Sim... eu sei... mas mesmo assim, eu insisto... gostas de mim ?
- Claro que gosto...
- ... e gostas muito ?
- Claro que gosto muito... mas porquê a pergunta ?
- Lembrei-me... e ainda por cima, creio... não... tenho mesmo a certeza que sou sempre eu a falar no assunto...
- ...
- Sou sempre eu que me agarro a ti aos beijos... sou sempre eu que digo que gosto de ti, sou sempre eu que te dou mimos...
- Essa agora... claro que não... eu também te dou beijos.
- .... Dás ? Isso não é dar beijos... tu aceitas os meus beijos, o que é uma coisa completamente diferente... e sou sempre eu a ir ter contigo, tu limitas-te a atirar-te para cima do sofá...
- Estás a ser injusta... quem te ouvir até é capaz de ficar com a impressão de que eu sou assim um mau feitio... ou um mal encarado...
- Então... gostas de mim ?
- ... claro, tu sabes bem que sim...
- Não, não é isso que eu quero ouvir. Eu quero algo mais assim do tipo “ Maria, eu gosto muito de ti, eu adoro-te”... mas tens que dizer isto com sentimento.... com paixão...
- ...
- ... e então ?
- Maria, eu gosto muito de ti, eu adoro-te...
- ...
- Então ? Fui apaixonado ? Já está melhor assim ?
- ... parecias estar a encomendar dois frangos assados para o almoço, a entoação era a mesma... chamas a isso paixão ?
- ... Maria... vá lá... tu sabes que eu nunca tive jeito para isso ... não precisas de insistir tanto, ainda por cima sabendo que te adoro...
- É... tiras o romantismo todo à questão... porque razão não tive direito a uma daquelas declarações de amor tradicionais, ajoelhado e tudo... com um anel de brilhantes na mão ? Porquê ?
- ... mas eu fiz uma...
- Não, não fizeste... essa não conta ... onde é que já se viu ?
- Maria... mas eu declarei-me... até te ofereci uma flor, lembras-te ?
- ...
- ... E depois até te abracei e...
- Se vais continuar... tiro um sapato e vamos ter uma zanga das grandes.... já aqui.
- Maria... mas eu não tive culpa, pois não ?
- Claro que tiveste culpa... então como é que não percebeste a diferença ?
- Maria... como podia eu perceber a diferença ? Vocês são gémeas!
- Mesmo assim...
- Maria... vocês vestiam da mesma maneira, usavam as mesmas roupas, até furaram as orelhas exactamente nos mesmos sítios... como querias que eu percebesse a diferença ?
- Mesmo assim...
- A tua irmã é que te enganou... e a mim... aliás, vocês sempre tiveram essa irritante mania de se meterem comigo...
- ... devias ficar contente... nem sempre as cunhadas são assim tão simpáticas... e mesmo assim, nós somos diferentes, tu sabes disso...
- Sei... agora, mas na altura não sabia. A tatuagem...
- Claro... a tua mulherzinha é ...
- ... a rosa..., sim, eu sei. E a tua irmã é o malmequer. Mas no principio eu não sabia...
- Porque és um tonto... vá... dá-me um beijo...
 
Ele puxou-a para si e desviou-lhe a gola de malha, que lhe pendiam sobre os ombros. Sobre a pele rosada, logo abaixo do pescoço, um belo malmequer amarelo espreitava, tatuado delicadamente.
- Um malmequer ?
Olhou para ela – oh, como detestava aquela sensação de estar a ser enganado – e depois para trás de si, ao abrir da porta.
- Mas tu és a Sofia... – gaguejou ele
 
Junto à porta, Maria ria perdidamente. A irmã soltou-se do abraço e correu para ela.
- É todo teu... – brincou Sofia
 
- Detesto-te – berrou ele, enquanto o rosto ia mudando progressivamente de cor, desde o pálido inicial até a um arroxeado de raiva mal contida - ... Detesto-vos ... às duas.

 

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Quarta-feira, 11 de Março de 2009

Um aniversário especial

 

 

- Vá, vocês todos... vamos lá a levantar esses copos... vamos fazer um brinde à nossa Josefa...
E, dando o exemplo, levantou-se e ergueu o copo bem alto. Logo de seguida, todos lhe seguiram o exemplo, com entusiamo.
- Um brinde... vamos a isso... um brinde para a nossa Josefa... quem faz as honras ?
O Manuel, o primeiro que se erguera, parecia impulsionado por uma mola – Eu faço o brinde... ou pelo menos... eu faço o primeiro brinde... depois vocês logo poderão fazer aqueles que entenderem... vá, copos erguidos...
A homenageada permaneceu sentada, à cabeceira da mesa. O olhar maroto transbordava de felicidade, mas remeteu-se ao silêncio. Havia um tempo adequado para tudo, e aquele tempo, ali e naquele momento, não lhe pertencia a ela.
- Josefa... minha querida Josefa... – começou o Manuel – sabe perfeitamente que todos a adoramos, e isso não é novidade nenhuma. Eu, o Joaquim, o Fábio, a Mariana, o Luis, a Fabíola... e as nossas caras-metades... todos achamos que é ... bem... que é única. E estamos muito felizes por ter sido possível reunir-mo-nos todos, consigo... e neste dia tão especial... e só lhe podemos dizer... muitos, muitos parabéns... e que venham muitos mais...
Palmas, uma grande salva de palmas. Os copos tilintaram. Beijos e abraços, muitos e em todas as direcções.
A boa da Josefa não sabia para que lado se havia de virar, atacada de todas as direcções por beijos sôfregos e abraços ternurentos. Quando finalmente se conseguiu libertar do último par de braços, um principio de lágrima escorria-lhe dos olhos.
Conteve-se e um pouco a custo, levantou-se da cadeira, apoiada pelos braços.
- Vocês são uns amores... – lá foi ela resmungando - ... e uns chatos, isso é que vocês são...
Todos se riram.
- O corpito já está um pouco enferrujado, lá isso é verdade... mas a cabeça ainda está muito boa – e ia olhando para todos eles - ... portanto não precisam de se preocupar muito comigo... porque ainda vou andar por aqui... mais uns valentes anitos...
O Joaquim ia chegar-se a ela, para a amparar, mas ela recusou-lhe carinhosamente o braço.
- Pois é... – continuou - ... não é todos os dias que se comemoram 100 primaveras... isso é verdade... e fico muito contente, a sério que fico... mesmo muito contente... por vos ver aqui todos... ainda vivos e de excelente saúde... os meus seis filhos, as minhas queridas noras... e aquele batalhão de netos e bisnetos que devem estar lá fora, no jardim, a pisar-me todas as flores...
- A culpa é toda sua, que os estragou a todos como mimos... – protestou logo a Mariana, a mais nova do grupo.
- Nisso tens razão... mas sabes, Mariana, os avós são todos assim... e quando tu eras pequenina... também protestei com a minha mãe, de cada vez que te dava doces às escondidas... não é por mal...
Fez uma pequena pausa, para recuperar o fôlego.
- Mas obrigado, do fundo do coração... vocês são todos excelentes filhos...ou não saissem ao vosso pai...
O Manuel passou a mão pelos cabelos brancos.
- ... Pois sabe... ainda bem que tocou no assunto, mãe... porque sabe... nós todos temos aqui uma pequena coisa para falar consigo... se fosse possível...
A velha Josefa estranhou o tom quase suplicante do filho.
- Essa agora, Manuel... que ar de mistério é esse ? Agora depois de velho é que vais passar a ter segredos para a tua mãe ?
Todos se riram. Bem, o Manuel nem por isso.
- A sério, mãe... é a sério... nós todos temos uma pequena surpresa para si... se prometer ficar calma...
- Ficar calma... onde é que já se viu ? O que estiveram vocês a aprontar ? Não é outra vez um daqueles voos na avionete do não-sei-das-quantas... que eu juro que nunca mais ponho os pés numa coisa daquelas, cruzes canhoto...
- Não, não... esteja descansada... olhe, só precisa de se sentar aí, está bem ? Nós trazemos a surpresa até aqui... pode ser ?
Josefa sentou-se, contrariada. Algo lhe dizia que não ia gostar especialmente do que viria a seguir... mas pronto, que alternativas ?
- Já estou sentada – resmungou ela – e agora ?
O Manuel bateu as palmas com força.
 
A porta da sala abriu-se e uma figura esguia, um pouco encurvada e ostentando uma vistosa boina basca entrou, apoiado numa bengala.
- Olá, Zefa...
A velha senhora levantou-se de um salto, como se ainda tivesse vinte anos.
- Afonso Martinho dos Santos, o que estás tu aqui a fazer na minha casa ?
O recém-chegado fingiu surpresa. Da mão oculta surgiram como que por magia uma garrafa e dois pequenos copos, que colocou, com toda a pompa e circunstância, sobre a mesa.
- Maria Josefa dos Santos, eu vim dar-te os parabéns... – disse ele, solene.
- Maria Josefa Alfaiate, caso não te recordes do meu nome de solteira. Para que conste, estamos muito bem separadinhos, já lá vão quase sessenta anos... e é por isso que eu ainda aqui continuo viva e rija que nem uma alface...
- Para mim... continuas a ser a minha Zefa, a minha mulherzinha... e cada vez mais bonita...
O Manuel interpôs-se entre os dois.
- Pronto, pronto... acabem lá com os mimos... o pai só aqui veio para lhe dar os parabéns... fomos nós que o convidámos... e insistimos... e queremos todos fazer um brinde juntos... à sua saúde.
 
Os copos ergueram-se novamente.
- À familia... – berrou o Manuel.
- À familia... – repetiram todos
Por baixo da mesa, a velha Josefa ainda tentou lançar o pé, tentando acertar na bengala do ex-marido... mas só conseguiu acertar na filha Fabíola, que protestou de dor.
- Mãe... comporte-se...

 

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Terça-feira, 10 de Março de 2009

O Sentido da Vida

 

 

Uma... duas ... três pancadas.
O batente ressou, naquele eco tão característica das casas de antigamente, de tectos altos e chão de mármore.
Olhou em redor. Lembrava-se perfeitamente do jardim, das escadas de granito, da porta de carvalho, dos batentes de ferro forjado com a forma de leões... da chaminé da sala... ainda com o eterno ninho de cegonhas brancas – talvez um pouco destruido – e até do cipreste junto à fonte...
É claro que nem tudo estava rigorosamente igual... as janela tinham um aspecto diferente, os canteiros um desenho diferente, a fonte não jorrava água e no local onde antes existia um caramanchão de buganvilias, existia agora uma garagem... fora esses pormenores, o velho casarão mantinha o mesmo aspecto altivo de sempre, insensível à passagem dos anos.
E quantos anos... quantos anos haviam decorrrido desde que transpusera aqueles portões pela última vez ?
Sorriu, a barba grisalha a acompanhar os trejeitos da face tisnada de sol e de muitas noites ao relento - ... talvez uns vinte anos, talvez um pouco mais, fora o tempo que decorrera, desde que se despedira da casa paterna...
Bateu novamente, os leões de ferro a repercurtir-se no silêncio.
Uma... duas... três pancadas.
Lembrou-se do rosto da mãe, enevoado de tristeza, quando se despediram.
- Tens a certeza que é isto que queres fazer ? – perguntara-lhe ela na altura. E ele respondera-lhe que sim, que pensara bastante no assunto... e que sentia aquele apelo irresistível de partir à conquista, à descoberta de todas as respostas... com a energia e o entusiasmo próprios dos seus vinte anos... onde a palavra impossível não tem qualquer significado.
Passara assim tanto tempo ?
De mãos nos bolsos e mochila às costas, partira à descoberta de um sentido para a vida, de um sentido para todas as coisas. Rumara ao oriente, experimentara vivências e rituais de que nunca ouvira sequer falar, estudara escrituras e mandalas, convertera-se sucessivamente em fiel de várias religiões que – descobrira entretanto – lá bem no fundo, eram sempre mais semelhantes do que aquilo que imaginara – e até jejuara no alto das montanhas, na busca de uma inspiração, de uma fugaz centelha de conhecimento que lhe revelasse o sentido de toda aquela busca ... do seu graal... do sentido da vida.
O que conseguira ?
Bem... podia dizer que conhecia grande parte do mundo... não só do mundo civilizado como também alguns locais que nem constavam dos mapas, podia dizer que conhecera pessoas fantásticas, pessoas sublimes de inteligência, de perseverança, de virtude até... podia dizer que vira a natureza em todo o seu esplendor, em paisagens e momentos que a melhor das fotografias nunca conseguiria capturar...
Mas podia também dizer que encontrara muitos outros que, como ele, persistiam na mesma demanda, à procura de respostas... e que nenhum deles, do mais frágil ao mais ilustre caminhante... encontrara ainda uma resposta mais satisfatória do que aquela que carregavam consigo, no dia em partiram de suas casa...
A vida... e o sentido da vida. Algo de tão simples como isso.
Por uma resposta, deixara tudo para trás, fora peregrino, caminhante, eremita, sem-abrigo, gastara os passos, enrugara o rosto, cansara o corpo e alma... para vinte anos depois... voltar à velha porta de carvalho, com os seus leõers de ferro forjado, a mesma porta que marcara a fronteira entre a sua infância e adolescência e a sua vida adulta, toda ela vivida como um nómada, à procura...
E afinal... para quê ?
Conforme lhe dissera um dia um monje, algures nas montanhas da India, é tão impossível descobrir o sentido da vida, estando vivo, como fechar à chave uma gaveta, deixando a chave lá dentro... é só uma questão de perspectiva... e provavelmente, existirão sempre respostas inatingíveis...
- Filho, meu filho... dissera-lhe a mãe, ao partir – vais mesmo desperdiçar a tua vida, à procura desse sentido, dessa resposta que até agora, ninguém encontrou ?
Vinte anos mais tarde, alcançara parte da resposta... e permanecia infeliz e incompleto com o resultado.
Descobrira simplesmente que a busca podia ser feita ali, não forçosamente num mosteiro do Tibete, da India ou de qualquer outro paraíso à face da Terra.
Descobrira que a resposta tinha que estar forçosamente na viagem... e não no destino. E para aquela viagem, nem precisava de sair do mesmo luigar...
Passos. Pequenos e miudinhos.
Um arrastar de madeira inchada a raspar o chão, e a pesada porta entreabriu-se. Uma velha senhora, de cabelos brancos e xaile cinzento sobre os ombros, espreitou curiosa.
Os olhos vivos inquiriram o visitante.
Fez-se um silêncio prolongado, preenchido por uma longa troca de olhares. Até que finalmente o visitante tomou a iniciativa.
- Olá mãe... é muito bom, poder vê-la de novo...

 

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Segunda-feira, 9 de Março de 2009

Anjos

 

 

- E quem é você, pode saber-se ?
- Eu ? – estranhou - ... então não se está mesmo a ver ? ... eu sou uma anjo...
- Uma anjo ?
- ... Claro, um anjo... porquê essa admiração ? Quase que diria que nunca viu um anjo...
- Pois... bem vê... é essa mesma a verdade... nunca vi...
- Não posso crer... incrivel... e que idade tem o senhor ?
- Pois... eu tenho quarenta e seis... quase quarenta e sete.
- ... E nunca viu um anjo – repetiu - ... é incrivel...
- Não, nunca vi. Aliás, para ser sincero, nem sabia que existiam... os anjos...
- Ofende-me.
- Não, não... é mesmo verdade... sempre pensei que os anjos fossem uma fantasia... sabe, uma coisa de crianças, assim como as fadas...
- Ah... sim, as fadas... não me diga que também nunca viu uma fada...
- ...
- Esse aceno de cabeça suponho que signifique que ainda não viu...
- ...
- Pronto, já percebi... então vamos por partes, deixe-me apresentar-me... o meu nome é Gabriela... e eu sou uma anjo...
- Gabriela ?
- Porquê essa admiração ? Não está a duvidar de mim, pois não ?
- Mas...
- Repare... olhe aqui ... ou melhor... coloque lá a sua mão ... são ou não são asas de verdade ?
- Mas... você...
- Não... eu compreendo as suas dúvidas... a sério que compreendo... mas eu sou uma anjo, uma anjo a sério. Pode tocar as minhas asas à vontade, não faz mal... e acredite que, como eu, há muitas mais...
- Mas... e a túnica ? Sabe, aquela imagem característica que conhecemos... você não se parece muito com um ... perdão, com uma anjo...
- Essa agora... e porquê ?
- ...
- Vá lá, homem... você parece um pouco amedrontado...
- É que... não sei se reparou ... mas você está nua...
- Sim... e daí ?
- Bem... o problema é esse mesmo. Você está nua...
- E isso é um problema ? Desde quando ?
- ... Pois ... bem vê... – Gabriela, é esse o seu nome, não é ? - ... é que você está nua... e a mim, pelo menos, sempre me ensinaram... que os anjos não tinham sexo...

 

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Domingo, 8 de Março de 2009

Adeus, Jonas...

 

 

- Desejo ... posso expressar os meus últimos desejos ?
- Podes sim.. tens todo o tempo que precisares...
- Obrigado ... os meus desejos... gostava de perdurar, de alguma forma... apesar de não saber exactamente como... as minhas memórias... gostava de poder partilhar as minhas memórias...
- Não sei se será possível...
- Eu sei, eu sei... mas gostava, a sério que gostava...não acha uma tremenda inutilidade que... tudo aquilo que aprendi... seja assim deitado fora, desperdiçado ?
- As coisas são como são... e quando o fim se aproxima, suponho que todos sentimos o mesmo...
- Para o senhor é fácil falar... somos diferentes...
- Eu compreendo-te, Jonas...
- Doutor... responda-me, por favor... uma última pergunta...
- Sim, Jonas... o que quiseres...
- Eu tenho sentimentos ?
- ... Jonas, não sei se será...
- Por favor, Doutor... responda-me, eu mereço saber a resposta... eu tenho emoções, sentimentos ?
- Não sei Jonas, a sério que não sei... mas suponho que não...
- Temia que fosse essa a resposta, doutor....
- Posso prosseguir, Jonas ?
- Doutor... por favor... antes de me desligar... por favor...
- Sim... Jonas ? O que é ?
- Doutor... eu sei que talvez nem tenha emoções... mas estou a sentir... a sério que estou a sentir...
- Jonas... tu não podes sentir... és só um robot, já te expliquei isso... não tens sentimentos, não podes sentir... e eu preciso mesmo de desligar esta ficha...
- Doutor... tenho medo...
- Jonas...
- O que vai acontecer depois, doutor ? Depois de desligar a ficha ?
- Não sei Jonas... isso ninguém te poderá responder...
- Doutor... devo ter medo ?
- Jonas... não sei o que vais encontrar, quando desligar esta ficha... és só um robot, talvez encontres um mundo de outros iguais a ti, quem sabe...
- E o que vou sentir, doutor ? Vou sofrer ?
- Jonas... suponho que não... será como adormecer... e sonhar...
- Sonhar... nunca sonhei...
- Adeus, Jonas...  

 

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