Terça-feira, 24 de Março de 2009

A quem encontrar esta garrafa...

 

“ A quem encontrar esta garrafa... “
Começava assim, desta tradicional forma, a mensagem rabuscada na folha de papel já amarelecido... que retirou de dentro da garrafa.
Descalçou as sandálias de couro e deixou-se cair sobre a areia morna. Na praia, já quase deserta áquela hora tardia, resistiam alguns veraneantes, de máquina fotográfica em punho, perseguindo os bandos de gaivotas ou esperando pacientemente pelo pôr-do-sol. Um casal de turistas corria ao longo da linha de água, acompanhado à distância por um cão felpudo, daquela raça de cães que os míudos – e graúdos – sempre apelidarão de Lassie.
Corria o final de Agosto, um daqueles dias quentes e pesados, onde só a brisa marítima conseguia disfarçar o sufoco das temperaturas de um Alentejo cada vez mais quente, até mesmo ali, na paradisíaca Vila Nova de Milfontes.
A garrafa esverdeada continuou a fitá-la, como se lhe pretendesse transmitir alguma mensagem adicional. Desgastada da viagem, do roçar da areia e de embates de toda a espécie, a corajosa aventureira acabara por cumprir a sua missão, transportando até terra, e bem guardada no seu interior, aquela mensagem escrita numa folha de papel.
 
“ A quem encontrar esta garrafa...”
 
Ainda procurou algum elemento de referência, um nome, mas ou essas indicações haviam desaparecido com o desgaste do tempo, ou nunca haviam sido escritas. De qualquer modo, ao menos tinha uma data de referência, num dos cantos da folha de papel... o que já era um bom sinal.
- 2 de Abril de ... 19... – se aquele risco fosse um dois... – 1929, seria ?
Voltou a murmurar aquela data. – 2 de Abril de 1929. O que teria sucedido ali, naquele tempo, quando alguém lançara aquela garrafa para o mar ? Quem seria o autor da mensagem ? E onde teria sido lançada ?
_ Questões a mais... – deu consigo a pensar – vamos lá ler este papelito... para percebermos melhor a história...
 
“ A quem encontrar esta garrafa...
Hoje é dia 2 de Abril ... o dia do meu aniversário. Vou fazer, daqui a pouco, 18 anos, vou ser adulto... e tudo vai ser diferente, vou poder fazer todas as coisas que agora não posso fazer, e todas as coisas que agora nem me deixam ser. Finalmente.
Vou ser livre...
Vou fugir de casa, pegar o primeiro barco e vou trabalhar para Africa, para o Brasil, ou até para a América.
Aqui, nunca vou passar de filho de pedreiro, nunca vou ter condiçoes de vida, nem posso sequer pedir a ... – parecia que as palavras seguintes haviam sido propositadamente riscadas – e só voltarei para ela quando for rico, importante, tiver um futuro...”
 
Levou instintivamente a mão à perna. Um pouco abaixo do joelho, uma pequena tatuagem a negro recordava-lhe a sensação da partida, a sensação de largar a casa de infância, os amigos, a velha escola às portas do deserto, os avós, os primos e toda a numerosa familia que deixara para trás, já lá iam tantos anos...
Quanto tempo passara ?
Trinta, quarenta anos ? Fora durante a altura da guerra, na década de setenta. A mãe morrera durante um bombardeamento, enquanto fazia as compras no mercado. A irmã mais pequena, Fátima, também estava com ela.
O pai, desencantado com tudo, pegara nos três filhos restantes – Sofia e os dois irmãos mais novos – largara tudo e fugira para o ocidente. Primeiro a Tunisia, depois Espanha, finalmente Portugal.
Encontrara um país simpático e acolhedor, sem rancores, de gente hospitaleira e bem disposta. O pai rápidamente começou a trabalhar na construção civil, alugaram uma pequena casa e Sofia, Mali e Samir depressa aprenderam a lingua e os costumes do país de abrigo.
 
“ A quem encontrar esta garrafa...”
 
Deu consigo a pensar que já estava ali havia mais de trinta anos... e que o seu pequeno filho Tomás, com dois anos, já era mais português do que ela, Sofia, alguma vez fora árabe.
Continuou a ler.
“... e no fim de tudo isto, só desejo a quem encontrar esta garrafa que seja tão feliz como eu vou tentar ser, apesar de não saber ainda sequer para onde vou.
Mas isso também não importa. O importante é ir, e conseguir ter a coragem para dizer adeus, sem saber se os vou voltar a ver algum dia...
Portanto, adeus a todos.
Se eu puder, voltarei.
Sejam felizes.”
 
Sentiu que as mãos lhe tremiam, enquanto dobrava cuidadosamente a pequena folha de papel no bolso da saia. Apanhou um punhado de areia fina e ficou a esvaziá-la com a mão semi-cerrada, como se de uma ampulheta se tratasse, sobre as pernas.
Os grãos de areia iam tapando a pequena tatuagem e escorrendo, unindo-se ao areal.
- O que significa essa tatuagem, Sofia ? – lembrava-se sempre da pergunta, a curiosidade do marido, dos sogros, dos colegas de escola.
- Nada de especial... mesmo nada de especial... – lá respondia ela – é só o meu nome... mas escrito em árabe... foi o meu pai que me ensinou a escrever, sabem... é só uma recordação...
 

 

publicado por entremares às 17:51
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5 comentários:
De Sofia a 24 de Março de 2009 às 18:27

Speechless...

Obrigada :-)
De Claire a 24 de Março de 2009 às 19:54
~*~
De Óscarito a 24 de Março de 2009 às 21:05
É extraordinária a tua maneira de escrever e descrever vidas, casos, situações.
Só posso agradecer-te por o fazeres e dar-me a oportunidade de ler.
Abraço/Oscar
De Sónia Pessoa a 24 de Março de 2009 às 22:39
adorei!...
De bento a 25 de Março de 2009 às 01:19
Agrada-me a sensibilidade do seu texto

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