- Atenção ! Todos vocês... – e a professora bateu com um pedaço de giz no quadro, para enfatizar.
A turma lá se foi sentando, por entre as normais picardias e brincadeiras de um inicio de aula. Um pacote de lenços de papel ainda voou como bala perdida, antes de falhar o alvo e acertar numa miuda sardenta, de óculos grossos, que não se conseguiu desviar a tempo.
- Hoje... – continuava a professora, uma mulher simpática já de meia idade, que sempre primara por usar roupa que ainda a fazia parecer mais velha – temos duas novidade...
Como o ruido de fundo teimasse em não desaparecer, ela interrompeu o discurso e ficou a contemplá-los, meio divertida, meio arreliada. Depois, dirigiu-se lentamente até à sua secretária, pegou no livro de ponto e, com um gesto súbito, deixou-o cair com força sobre a mesa.
O estampido fê-los dar um salto nas cadeiras.
Vinte pares de olhos viraram-se de imediato na direcção da professora.
- Pronto... agora que já consegui chamar a vossa atenção... estava eu a dizer que hoje vamos ter duas novidades na nossa aula... e a primeira já devem ter reparado qual é... – e apontou para uma das mesas do canto, onde uma míuda ruiva, vestida integralmente de negro, retribuiu, levantando um braço.
- ... chama-se Erica, vem de fora... e vai passar a fazer parte desta turma até ao final do ano...
Os olhares da turma concentraram-se na forasteira, em especial no número pouco simpático de brincos e piercings que exibia. Em contrapartida, exibia um sorriso simpático e contagiante, sem maneirismos.
- ... e a segunda novidade – continuou a professora – é que hoje, segunda-feira, dia 2 de Março, eu... estou em greve... de silêncio.
A turma animou-se. Portanto, alguma coisa se passava, tudo bem... a professora Margarida por vezes tinha assim estas ideias ... diferentes... e existia sempre algum motivo, eles já se iam habituando... provavelmente, ia dar uma valente reprimenda em alguém e aquilo fazia parte da estratégia... logo se veria.
- Então hoje não vamos dar a aula, certo ? – quis saber o Favas
A professora dirigiu-se ao quadro e escreveu:
“Hoje, só vamos comunicar por escrito. A partir de agora.”
- Sim, está bem, já percebemos... e a gente... faz o quê ? – insistiu ele
A professora apontou primeiro para o quadro e depois ofereceu-lhe um pedaço de giz. A seguir, voltou a apontar para a frase que escrevera no quadro.
Risinhos miudinhos. A aula ia ser um gozo.
O Favas lá se levantou e foi até ao quadro.
“ O que vamos nós fazer durante a aula ?” – escreveu.
A professora prontificou-se.
“ Queria fazer algo de diferente. Tens alguma sugestão ?”
O Favas abanou a cabeça. Mas ainda tentou a sorte.
“ Podia deixar a gente ir jogar para os computadores.”
Mais risinhos.
“ Nem penses. Tem que ser alguma coisa relacionada com o Português. Isto é uma aula de Português.”
Suspiro de desânimo generalizado.
- Stôra... – e o Xavi, como sempre encostado à parede, esticava o braço – também posso ir aí ?
Ela acenou-lhe com o giz, convidando-o para se aproximar.
“ Podemos escrever anedotas ?” – gatafunhou ele, mais riscos que letras.
“ Podemos. Mas eu preferia escrever outras coisas” – escreveu a professora.
“ Que coisas?”
A professora dirigiu-se à secretária e pegou num livro. Procurou um pouco e depois voltou ao quadro, de giz em punho.
“ Copiem o que eu vou escrever para os vossos cadernos.”
Esperou que o Xavi se voltasse a sentar e atacou.
“ Tinha um cravo no meu balcão;
veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não ?
Sentada, bordava um lenço de mão;
veio um rapaz e pediu-mo
- mãe, dou-lho ou não ?
Dei um cravo e dei um lenço,
só não dei o coração;
mas se o rapaz mo pedir
- mãe, dou-lho ou não ? “
A turma copiou em silêncio o pequeno poema para o caderno. No silêncio – raro – as canetas riscavam os cadernos e quando a Débora espirrou, um par de olhares reprovadores quase que a fizeram sentir mal.
A Marta esticou o braço. Também queria escrever qualquer coisa no quadro.
“Foi a stora que escreveu ? Está muito bom.”
“ Não, foi um poeta português. Gostaste ?”
“ Está giro.”
“ Percebes a ideia que ele está a tentar transmitir-te?”
“ Não tenho a certeza, mas acho que ela está indecisa, e não sabe o que há-de fazer.”
Três braços esticados insistiram em dar a sua opinião. A professora apontou para o Johnny, como ele gostava de ser chamado.
“ Eu acho que ela está apaixonada” – escreveu ele
“ Quando escrevemos poemas, é sinal de estarmos apaixonados ?” – escreveu a professora
“ Eu nunca escrevo poemas. Isso é coisa de raparigas.”
Risinhos.
“ Quem é que quer vir aqui escrever algum poema ?” – desafiou a professora, em letra propositadamente maior.
Entreolharam-se todos.
A forasteira, timidamente, ergueu o braço.
A professora sorriu. Teve o pressentimento que ia gostar daquela miuda. Ofereceu-lhe um pedaço de giz.
A Erica rasgou uma das folhas do caderno e dirigiu-se ao quadro. Pelo caminho, ainda teve que se esgueirar a uma rasteira furtiva, de um pé propositadamente esquecido no seu caminho. Lançou-lhe um olhar furioso e o engraçadinho respondeu-lhe com uma careta.
“ Eu não sei o que é o silêncio.
Não sei se é quente ou frio,
mas dizem-me que é como o barulho do mar.
Nunca ouvi o silêncio,
nem a música,
nem o mar.
Mas conheço o calor do sol,
o arrepio do vento,
o frio do inverno.
E, para mim, eles também são silêncio.”
A professora ficou a olhar para aquelas linhas, enquanto Erica se voltava a sentar.
Deixou passar uns segundos, observando as reacções. Três braços estendidos insistiam novamente em expressar uma opinião.
Mas foi a própria professora que optou por escrever a sua própria opinião no quadro.
“ Este poema está lindo, apesar de um pouco triste. Suponho que fala de um tipo de silêncio que nem todos conhecemos, mas que a Erica conhece bem. Mas também fala das coisas boas da vida, do calor do sol e do barulho do mar, da sensação de estarmos vivos. Concordam comigo ?”
Quando se virou para trás, encontrou os acenos de assentimento. Só a Erica sorria, agradecida pelo elogio ao seu poema.
“ Mas ainda existe uma outra coisa aqui que torna este poema especial. Não imaginam o que é ?”
Virou-se novamente.
Não. Nenhum braço esticado.
“ Pois bem... eu digo-vos. A Erica, a autora do poema, que aqui nos está a falar do silêncio, a vossa colega é ... surda-muda. De nascença.”
Um burburinho percorreu a sala, enquanto alguns olhares curiosos voltavam a investigar o rosto da forasteira, agora corado de tanta exposição pública.
“ Esta pequenina experiência, onde só escrevemos... sem falar, só teve a intenção de vocês todos perceberem, por uns minutos que seja, o mundo do silêncio que a Erica já conhece... desde que nasceu.”
Deixou passar mais alguns momentos, para o silêncio poder digerir as palavras.
“ Pronto... está dito. E agora... quem é que quer vir aqui escrever a opinião sobre o poema da Erica ?”
Virou-se para a turma.
Onze braços esticados queriam dar uma opinião.